quinta-feira, 17 de julho de 2025

Filosofia da Stoa



















FILOSOFIA da STOA -- As Teses de Zenão e Cleanthes

(c) Ciro Moroni Barroso

Lançado no Rio de Janeiro em Agosto de 0019 por:

Editora 7 Letras


A Stoa Poikile

A Galeria das Pinturas [Stoâ Poikîle] no centro de Atenas, é o local de instalação da Stoa filosófica, próximo a 301 a.C., por Zenão de Cítium, um greco-fenício.

A doutrina dos Estóicos, portanto daqueles que ensinam na Galeria, era uma continuação, na Ética, da doutrina de Antisthenes, um severo socrático de três gerações anteriores, que ensinava uma filosofia de austeridade e firmeza de caráter: esta que recebeu o sentido posterior de “estoicismo”.

O jovem Zenão, filho de próspero mercador Fenício, havia chegado a Atenas uns 12 anos antes, se tornando estudante de Filosofia. Como estudante, ele propõe uma síntese que é a Filosofia original da Stoa: na Física e na Lógica, uma nova leitura de platônicos e aristotélicos, e na Moral, a orientação cínica de Antisthenes.

Cleanthes de Assos (na Trôada) era cinco anos mais novo que Zenão, e foi seu discípulo, havendo feito contribuições originais à Stoa, segundo o prof. Pearson. Ao passo em que as sínteses de Zenão resultam de seu esforço lógico sobre os autores, Cleanthes é um filósofo do tipo intuitivo, sendo sincero devoto da ordem dos deuses olímpicos. Sendo poucas as indicações biográficas, ao que parece Cleanthes era homem muito forte e auto-confiante [pugilista]. Após se dedicar a apreender com toda atenção o quadro filosófico que lhe desenhava Zenão, suas teses indicam um regime de estudos dos autores, e meditações contínuas.

Cleanthes foi autor de muitos tratados de física e lógica, incluindo um estudo em 4 volumes sobre Herácleitos [não preservado]. Seu Hino a Zeus é um marco filosófico/teosófico do paganismo. Segundo a tese em Duhot, tanto a tradução grega do Velho Testamento feita pelos sábios hebreus de Alexandria, quanto a mescla doutrinária-lendária dos primeiros cristãos, foram beneficiárias de muitas formas das doutrinas estóicas, de sua teologia, do Hino de Cleanthes, da ética de Epictetos.

Na Introdução de sua Coletânea de fragmentos dos dois fundadores da Stoa, o prof. de Estudos Clássicos de Cambridge A. C. Pearson sustenta que contribuições de inspiração heraclítica de Cleanthes, como a concepção do tonos, não confirmam a imagem de um filósofo de posição secundária. Nas leituras de Pearson, contrariando as leituras eruditas até o séc. XIX (e reassumidas por Arnim e Bréhier no séc. XX) não é Crísipos quem de fato estabelece o "Cânone Estóico". Este cânone seriam as teses de Cleanthes dando acabamento perfeito ao panteísmo dinâmico do iniciador Zenão.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Duas colunatas delimitavam a entrada da Ágora: a Stoa era a colunata do lado esquerdo de quem entrava


Principais Obras Citadas

1) Pearson, Alfred Chilton, The Fragments of Zeno and Cleanthes – with introduction and explanatory notes, Cambridge Univ. Press, 1891, 344 pags. New York Arno Press, 1973. The Cornell University Library Digital Collections, 2012
archive.org/stream/thefragmentsofze00zenouoft#page/n1/mode/2up

2) Arnim, Hans Von, Stoicorum Veterum Fragmenta, 1903, 1905, Berlim
archive.org/query=Stoicorum Veterum Fragmenta

3) Kury, Diôgenes Laêrtios - Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, trad. do grego, introd. e notas, Mário da Gama Kury, Edit. Univ. de Brasília, 1987.

4) Hicks, Lives of Eminent Philosophers - Diogenes Laertius, Robert Drew Hicks trans., Harvard Univ. Press. 1972. (First published 1925, Cambridge)
wikisource.org/Lives_of_the_Eminent_Philosophers_Hicks

5) Bett, Sextos Empiricus: Against the Logicians I, II [Ad. M. VII, VIII] Richard Bett trans.& editor, Cambridge Univ. Press, 2005

6) Bréhier, Émile, La Théorie des Incorporels dans l’Ancien Stoïcisme, Lib. Philosophique J. Vrin, [1908, 1928] 1997

7) Long, Anthony, Hellenistic PhilosophyStoics, Epicureans, Sceptics, Univ. California Press, (1974) 1986

8) Long, A.A. & Sedley, D.N., The Hellenistic Philosophers – Vol. I - Translations of the Principal Sources with Philosophical Commentary, 1987

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imperador Romano Marco Aurélio, séc. II. Militar e escritor estóico helenizado

 

Atenas Ano 477 da Fundação -- 300 aC

[168] Cleanthes de Assos... chegou a Atenas com quatro dracmas... encontrando-se com Zênon passou a estudar filosofia, demonstrando grande dedicação, e permaneceu fiel à sua doutrina. Sua operosidade tornou-se famosa, pois sua extrema pobreza obrigava-o a trabalhar para viver. Assim, enquanto à noite tirava água dos poços de jardins, durante o dia exercitava-se na argumentação... Dizem ainda que foi levado aos tribunais para explicar de onde tirava os meios de vida, sendo uma pessoa de constituição física sã e robusta, porém foi absolvido ao apresentar como testemunha o jardineiro junto ao qual tirava água dos poços, e a vendedora de farinha para quem moía trigo. [169] Os juízes do Areópago ficaram satisfeitos e decretaram que lhe fossem dadas dez minas... [Kury, VII]

A lista das obras de Cleanthes [acme 290 aC] demonstra sem dúvida que ele foi filósofo original, desenvolvedor das teses de Zenão, não apenas um seguidor...











Alguns dos 50 Títulos de Cleanthes em Diog. Laércios VII. 174:

Sobre a Filosofia Natural de Zênon (2 v.) // Interpretações de Herácleitos (4 v.) // Lógica (3 v.) // Os Predicados // Do Tempo // Da Sensibilidade // Da Arte // Do Impulso // Antiguidades // Dos Deuses // Do Casamento // Dos Poetas // Do Dever (3 v.) // Do Fim Supremo // O Estadista // Da Realeza

Sua dedicação à leitura das teses em Herácleitos de Êfesus, fonte de suas melhores contribuições teóricas, seu Hino a Zeus, suas várias referências lógicas, éticas, físicas, literárias, mostram um espírito persistente, sistemático, analítico. Se era pouco veloz nos raciocínios e frases, isto seria devido à sua condução intuitiva do processo analítico, o que seria sem dúvida bastante estranho aos procedimentos erísticos e dialéticos dos filósofos sofísticos ou pirrônicos, que lhe dirigiam gracejos (Conforme Tímon)... Cleanthes não se importunava, e respondia: “Somente eu sou capaz de suportar o fardo de Zênon”.











O Herói Heraklês aparece nesta procissão entre Deuses Olímpicos, na Atica de cerca 500 aC. Como semi-deus estreante, Heraklês parece um tanto assustado ou preocupado no desfile, levando um poderoso tacape, junto aos Imortais... Um dos deuses parece lhe dirigir uma anedota... "Ó Heraklês, por algum tempo ainda farás uso desta alavanca entre os mortais"! ...


Algumas das principais obras de Zenão de Citium:

[Diog. Laércios VII. 4; 39; 134; 157]

Origem dos Deuses, ou da Teogonia de Hesíodo [Nat. Deo. I, xvi] // Da Substância // Do Universo // Da Alma // Da Vida Segundo a Natureza // Do Impulso, ou da Natureza Humana // Das Paixões // Da Visão // Do Dever // Da Lei // Ética // Sobre a Lógica // Dos Universais // Da Educação Helênica // Questões Pitagóricas // Dos Sinais (Divinatórios) // Problemas Homéricos (5 v.) // Da Leitura da Poesia // Das Espécies de Estilo // Arte Retórica // Recordações de Crates

Entre centenas de fragmentos que se dispersam, e que se repetem, de Zenão e Cleanthes, de Crísipos e Diógenes da Babilônia, de Panécios e Possidônios – preservados por Stobeos, Laércios, Galenos, Sextos Empíricos, Plutarcos, Sêneca e Cicero - nenhum texto original dos antigos mestres Estóicos foi preservado – com exceção do Hino a Zeus, de Cleanthes de Assos, colecionado por Stobeos em seus Extratos Físicos e Morais [Eclogae, I. 1.12].

O original está em Pearson, C. 48. O Hino com 39 linhas tem diversas falhas revistas e interpolações feitas pelos estudiosos. Pearson faz 36 anotações ao texto.

O Hino a Zeus e diversos textos estóicos romanos, incluindo os tratados de Cicero, Sêneca, Epictetos, Marco Aurélio, e o capítulo VII de Laércios, estão na coletânea Les Stoïciens, organizada e traduzida por Émile Bréhier, editada por P.-M. Schuhl, 1962, 1.500 pags.

Jean-Joël Duhot em seu estudo sobre Epictetos e a sabedoria estóica no mundo romano demonstra como “Por intermédio do judaísmo helenístico e da pregação de Paulo [de Tarso], o Estoicismo tornou-se um tanto o passageiro clandestino do Cristianismo”. Na tradução para o grego do texto canônico bíblico, feita pelos “Setenta Sábios Hebreus de Alexandria”, temos uma reconstrução, em terminologia estóica, da antiga tradição teológica mesopotâmica-hebraica – e não uma versão religiosa “inspirada”...

Por sua vez, Paulo de Tarso, o pregador do sincretismo religioso pré-cristão, estaria fazendo citação direta do Hino a Zeus no tema da “nossa semelhança e descendência física” ao grande Deus Universal... (Também presente no filósofo estóico contemporâneo Arato). [Epicteto e a Sabedoria Estóica, Ed. Loyola, 2006, pags. 215; 207] [Bayard Éditions, 1996]









Um Hino para Zeus

Long & Sedley, The Hellenistic Philosophers, 54. I [pag. 326]

Most majestic of imortals,
many titled, ever omnipotent Zeus,
prime mover of nature, who with your law
steer all things, hail to you [!]

For it is proper of any mortal to address you:
We were your offspring, and alone of all mortal creatures
which are alive and tread the earth we bear a likeness to god.

Therefore I shall hymn you and sing for ever
of your might.

All this cosmos, as it spins
around the earth,
obeys you, whichever way you lead,
and willingly submits to your sway.

Such is the double-edged fiery
ever-living thunderbolt which you hold at the ready
in your unvanquished hands...

 

Lêkton Incorporal









A tese do “incorporal” como princípio, estado ou predicação aparece:


1) Como vestígio platônico:

Zenão estabeleceu que a substância natural que fez a gestação de todas as coisas, mesmo dos sentidos físicos e da mente, era ela própria fogo. Ele também se distinguiu desses autores ao sustentar que uma substância incorpórea, tal como Xenocrates e os pensadores mais antigos haviam se pronunciado acerca da mente, seria incapaz de qualquer atividade, ao passo em que qualquer coisa capaz de agir, ou de sofrer ação de qualquer forma, não poderia ser incorpórea. Cicero, Academica I. 39 [1]


2) Como a forma dos “princípios”, em contraste com a forma corpórea dos “elementos”, porém de modo controverso em Diog. Laércios VII. 134:

De conformidade com os estóicos, há uma diferença entre princípios e elementos: os princípios não foram gerados e são incorruptíveis, enquanto os elementos se corrompem quando ocorre a conflagração do cosmos. Além disso os princípios [arkhás] são incorpóreos e informes, enquanto os elementos [stoikeïa] têm uma forma determinada. [Kury, VII. 134] [2]

3) Como qualidade, propriedade ou modo do Tempo, do Espaço, e do Vácuo. Aqui pode-se conjecturar que a qualificação “incorporal” poderia ser dada não como o que é contrário, ou negativo, dos corpos: mas o que tem um sentido complementar, que existe num movimento de contraponto, acabamento. Estes filosofemas contudo só fazem sentido a partir da tese: “tudo é corpo”. [3]


4) Como incorporalidade natural de impressões na mente provenientes da imaginação, e não de seres do mundo real. Na seção sobre a lógica estóica, recolhida no manual de Dioclês de Magnésia, Diog. Laércios registra:

[61] Um objeto de pensamento (ou noção) é uma imagem do pensamento [Enôema dê esti phântasma dianoîas], que embora não seja realmente substância ou atributo é de certo modo substância e de certo modo atributo – por exemplo, a imagem de um cavalo que pode se apresentar diante do espírito, embora não seja o cavalo. [Kury, VII] [4]

e

[51] Os estóicos dividem as phantasiön [impressões] entre aquelas que são sensóreas e aquelas que não o são. As impressões sensóreas são aquelas obtidas através de um ou mais orgãos sensóreos, não sensóreas são aquelas obtidas por meio do pensamento [têns dianoîas], tais como aquelas das coisas incorporais [tôn assomâton] e das outras coisas adquiridas pela razão [âllon tôn lôgou lambanomênon]. [D.L. VII. 51]. [5]

Assim temos duas possibilidades de distinção da phantasîa enquanto produto do pensamento no [51]: “coisas incorpóreas” e “outras coisas adquiridas pela razão”. [6]

A “incorporalidade” de uma predicação estaria, de início, em sua designação de uma entidade abstrata, ou imaginária. Trata-se aqui, claramente, de impressões incorporais ou imaginárias as quais dão origem a expressões (lektá). Portanto, de início da ordem do phantastikôn [imaginação], porém sendo tomadas agora como phantasiön. Não é o mesmo que segue a partir de (5), onde sentenças, frases ditas, pensamentos, criam imagens em nossa mente, as quais seriam em seguida designadas por incorpóreas.


5) Portanto daquela concepção, que deveria pertencer ao momento inicial da Stoa (de impressões espontâneas abstratas), uma nova tese parece se sugerir no sentido de que todos os lektá, predicações significativas, designações de atributos, modos, seriam incorporais devido a que seu substrato é uma representação na mente, não a disposição de elementos no mundo real designada. Temos agora impressões abstratas ou incorpóreas, as quais resultam de predicações. Em Sextus Empiricos:

[Os Estóicos] dizem que um lektôn é aquilo que subsiste de acordo com uma impressão [phantasîa] racional, uma impressão racional é aquela em que o conteúdo da impressão pode ser exibido na linguagem. [Ad. M. VIII. 70] [7]

A impressões abstratas, produzidas na mente pela linguagem, são agora mais propriamente subsistentes, porém não existentes: [8]

As leituras de S. Empiricos e D. Laércios revelam uma dificuldade em distinguir as duas acepções mencionadas em (4), (5), onde elas estão como que “grudadas”.

Seria estranho, a propósito, que a tradição estóica tivesse tomado como criterion, como cânone, ou “critério da verdade”, o princípio da “representação [impressão] compreensiva”: Se considerado apenas como o critério da percepção segura, este filosofema deveria indicar um fechamento da Física para a abertura da Lógica (ou mesmo vice-versa). [9] Na medida em que este critério é transposto diretamente para a Lógica, isto é,  para os pensamentos, concepções, teorias, visões de mundo, etc, fica-se logo com a carência do substrato, que antes estaria nos objetos da percepção. Como criterio puramente lógico (do pensamento, da linguagem) este impasse seria de fácil solução, uma vez que o “substrato” pertence à física da mente - comandada, assim como o corpo, pela alma ou sua parte ativa, o hegemonikôn.


6) Como incorporalidade do que é designado em certas predicações de circunstância, estado, que dependem de uma convicção inicial do observador. O observador meramente aponta um caso ideal de significação no qual o observado se encontra:

“O verdadeiro” é dito como sendo “simples e uniforme”, e isto é aplicado a qualquer proposição que distingue qual é o caso. Porém “verdade” é algo composto e uma coleção de muitas coisas. De modo diferente do “verdadeiro”, a verdade é peculiar ao homem sábio, é corpórea; ao passo que “o verdadeiro” é incorporal. [Long, p. 130] [10]

As predicações se tornam incorporais porque designam situações corriqueiras, personalizadas, as quais dependem de conteúdos gerais abstratos para se afirmar. A opinião é assentimento fraco, incorpóreo, porque designa algo incerto e passageiro. Portanto, subsiste apenas no pensamento e na linguagem. [11]

Nesse caso, as duas espécies de predicações coexistem. A predicação corpórea é “conhecimento”, “causa”, “natureza”, “logos”; enquanto a incorpórea é “crença”, “opinião”, “assentimento fraco”.


7) Enquanto no platonismo o modo incorporal está no origem de cada predicação, como idéia abstrata – agora, em nova (crisipiana?) elaboração, o sentido incorporal está na consequência do discurso:

“Somente em lugar de empregar o incorporal como a causa dos seres, eles o empregam como os efeitos” [Bréhier, p. 10]


8) Como resultado da “mistura dos corpos”: a designação das causas que agem entre os corpos seria de outra natureza que a designação dos efeitos que eles mantêm entre si. Esta designação diria respeito a “efeitos de superfície” que os corpos manteriam entre si como misturados, sendo deste modo uma predicação incorporal:

“(Os seres reais) não são causas uns dos outros, mas causas, uns para os outros, de certas coisas.” Essas modificações são realidades? substâncias, ou qualidades? De modo algum: um corpo não pode dar a outro propriedades novas... Eles admitem uma mistura [mîxis, ou krásis] dos corpos que se penetram em suas partes mais íntimas. [Bréhier, p. 11] [Stromateis, Clem. de Alexandria, VIII. 9] [S.V.F. II. 349]
Dois planos de ser: de um lado o ser profundo e real, a força; de outro o plano dos fatos, que se projetam na superfície do ser e que constituem uma multiplicidade sem lugar e sem fim de seres incorporais. [Bréhier, p. 13]

Todos os corpos são causas uns para os outros... de certas coisas de uma natureza completamente diferente. Esses efeitos não são corpos... não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos. [Deleuze, p. 5; Dos Efeitos de Superfície] [12]


9) Como consequência do estado transitivo: a disposição, a mistura, ou o estado dos corpos no mundo requer a predicação incorporal porque estas condições envolvem os corpos, assim como o tempo e o espaço, mas não pertencem a eles: apenas se dão como a possibilidade, a circunstância ou o acabamento de sua disposição. Este sentido incorporal se designa por verbos que dão a condição ou estado dos corpos, mas não sua natureza ou propriedades. A condição transitiva é um atributo, mas este atributo é incorporal. [13]

Esta idéia, em continuidade com o conteúdo em (8), sugere uma formulação original em Crísipos. Bréhier indica sua origem megárica (p. 20).

Em Sêneca encontramos:

Existem naturezas materiais, tais como este homem, este cavalo, e elas são acompanhadas por movimentos do pensamento os quais fazem afirmações sobre elas. Estes movimentos contém algo peculiar a eles mesmos que é separado dos objetos materiais. Por exemplo, eu vejo Cato caminhando; o sentido da visão revela isto para mim e a mente nisto acredita. O que eu vejo é um objeto material e é para um objeto material que eu dirijo minha visão e minha mente. Então eu digo “Cato está caminhando”. Não é um objeto material que eu agora designo, mas uma certa afirmação sobre um objeto material... E assim, se nós dizemos “sabedoria”, nós tomamos isso como referência a algo material; porém se dissermos “ele é sábio”, nós fazemos uma afirmativa acerca de um objeto material. Há uma grande diferença entre você se referir ao sujeito diretamente, ou falar acerca dele. (Epis. Luc., 117, 13) [14]


10) A condição incorpórea enfim estaria no estado dos corpos, mas só poderia ser recolhida ou reconhecida na linguagem:

Consideremos o estatuto completo do sentido ou do expresso. De uma lado, não existe fora da proposição que o exprime. O expresso não existe fora de sua expressão... O acontecimento pertence essencialmente à linguagem. [Deleuze, p. 22]

Fenomenologia para se constituir novamente um mundo a partir de nossa percepção, ou comprensão sutil dos modos de realidade que exige de nossa linguagem um salto de imaginação – a tese da predicação incorporal parece um híbrido, um nominalismo em permanente reconstrução bizantina, que não permite reinvindicar a unidade do conceito por parte de “os estóicos”, “os dogmáticos”, e assim por diante.

Não seria difícil se obervar, numa inferência sobre a História da Escola dos Estóicos, uma série de utilizações e apropriações sucessivas da idéia do “incorpóreo”, e da “predicação incorporal”. De início como conceito platônico, estas hipóteses evoluem para designar o espaço e o tempo, atributos e generalidades produzidas pela linguagem, e casos gramaticais próprios (atributos “acerca de”; efeitos transitórios; efeitos-dos-corpos-entre-si), concebidos por algum hábil erístico ou dialético – tal como o supomos Crísipos. Como aspectos da Lógica, estas hipóteses devem ter merecido algum desenvolvimento em Diógenes da Babilônia, Apolodôros, Arquedêmos, Possidônios, etc. [15]

Podemos aceitar a leitura em Long de “inovações feitas por Crísipos que foram enxertadas nas teorias estóicas anteriores”:

A. C. Lloyd sugere que “existe um conflito latente e não reconhecido entre a teoria estóica do significado e a teoria estóica da etimologia.” [Lloyd, A.C., Grammar and Metaphysics in the Stoa. In: Long, A.A., Problems in Stoicism, ch. 4, London, 1971] O conflito ao qual ele se refere é a aparente disparidade entre o significado como “incorporal”, e a teoria que os elementos da linguagem são naturalmente similares às coisas no mundo. Eu também acho que existe o conflito e por certo alguma confusão, mas isto talvez possa ser explicado por dois aspectos: primeiro, inovações feitas por Crísipos que foram enxertadas nas teorias estóicas anteriores; segundo, por uma análise metafísica dos objetos e suas propriedades à qual a linguagem é requisitada a se conformar. [Long, p. 135]

[Galenos] procurou mostrar que Cleantes e mesmo Zenão não oferecem suporte para a doutrina de Crísipos. [Long, p. 219] [16]

Conclui-se por uma coleção de teses sob o conceito de “incorporal”, teses lógicas, gramaticais; da percepção e dos juízos; teses de uma física de “corpos” os quais se revestem de efeitos incorporais... teses que não chegam a formar uma Teoria dos Incorporais, conforme Bréhier – não uma teoria filosófica unificada, que possa ser considerada um cânone na tradição dos Estóicos. Como possível contribuição de Crísipos, um esboço de teoria – original, por ver os sentidos dos verbos enquanto designação de condição ou estado como sendo do mesmo valor que uma disposição dos corpos dentro de espaços e tempos incorporais – de sorte que esta disposição mesma se tornaria “incorporal”...

Ainda assim, não uma tese coerente, que seja dada como equivalente ou consequente ao corpo doutrinário e histórico da Stoa.

* * *

Ciro Moroni Barroso, Rio de Janeiro 2013

 

Notas

[1] Nossa tradução para a trad. inglesa de H. Rackham.

[2] Este parágrafo, como tantos outros, de sentido isolado em Laércios, indica que ele deve estar compondo seus parágrafos a partir de leituras descontínuas de manuais de fontes e épocas diferentes.

O parágrafo VII. 134 está em L&S, 44. B [Princípios]. Os autores traduzem “os princípios são também corpos”, porém observam que no texto paralelo do Suda está “os princípios são incorpóreos” – o que é consistente com serem igualmente “sem forma”.

Assim como o [134], novamente o parágrafo VII. 140 mostra ambiguidades e erros de transcrição insuperáveis, acumulados nos séculos:

Depois de mencionar [VII. 140] o vazio infinito fora do cosmos como incorpóreo; o incorpóreo como sendo capaz de conter corpos; o cosmos como unidade compacta; a inexistência do vazio dentro do cosmos; a afinidade e sintonia reinantes, e alguns estudos estóicos sobre o vazio, a última sentença aparece descontínua, sugerindo erro na transcrição do original:

“São todos estes todavia igualmente incorporais”,
ou
“igualmente corporais”
Eïnai dé kaí taῦnta [a]ssômata homoîos

original com as duas opções: clique em [Diogenes Laertius, greek]:
perseus.tufts.edu/hopper/collection?collection=Perseus:collection:Greco-Roman

O tradutor brasileiro entende que a última frase se refere somente a “afinidade e sintonia” [sûmpnoian kaí suntonîan] que ele conclui por serem “incorpóreas como o vazio”. O tradutor Hicks também supõe a última frase se referindo somente a “afinidade e sintonia” [sympathy and tension], porém entende que elas deveriam ser “corporais”. Isto certamente está de acordo com seu poder de bind together things in heaven and earth. Em sua nota [62] Hicks observa:

O Professor Pearson sugere: “são igualmente incorpóreos ainda estes:” - como introdução para o parágrafo seguinte [141].

Nesse caso a última frase controversa é destacada do [140] para formar o início do [141], no qual o tempo será apresentado como incorpóreo.

Entretanto, a leitura mais provável é a de que, nos cinco estudos mencionados sobre “o Vazio” (dois de Crísipos, um de Apolophanes, um de Apolodôros e um de Posidônios), todas as versões deste conceito sejam “igualmente incorpóreas”.

[3] Nesse caso, “incorpóreo” poderia se considerar aquilo que é destituído de corpo; ao passo que “incorporal” designaria aquilo que existe num movimento de acabamento ou cobertura dos corpos.

[4] A mesma tradução em Hicks [61] para enôema: “notion or object of thought”. Entretanto, L&S [30. C] traduzem enôema como “concept” (levando a leitura para a compreensão conforme o item 5, a seguir).

E Long&Sedley [39. A] traduzem phântasma dianoîas por “figment of the mind” o que parece mais adequado que Hicks: “presentation to the intellect” – quando phântasma [figment] e phantastikôn [imagination] devem ser distintos de phantasia [presentation, em Hicks]. Por exemplo:

Entende-se por phantasia aquilo que se forma do existente de conformidade com o próprio existente, estampado, marcado e impresso na alma, e que jamais poderia    proceder do não existente. [Kury, VII. 50]

[5] Nossa tradução para [L&S 39. A (4)]. Bréhier, que traduz phantasiõn como “représentations”, discutindo o [VII. 51] entende que os “exprimíveis” [lektá] fazem parte dos “incorporais” e não das “outras coisas percebidas pela razão” (p. 18).

[6] Uma predicação, ao mencionar “coisas incorpóreas”, ou “impressões não produzidas pelos sentidos”, não se torna porisso, ela mesma, “incorpórea”; ao passo que, simultaneamente, um pensamento ou predicação pode produzir impressões abstratas, ou incorpóreas, na mente. (cf. D.L. VII. 43)

Rackham e Hicks optam por “presentation” para phantasia, o primeiro para traduzir o latim visum de Cicero. Esta tradução inglesa deve ter contribuído para a escolha de “apresentação” pelo tradutor brasileiro, para traduzir phantasia na obra de Diógenes Laércio. Bett opta por “appearances”.

[7] Nossa tradução para [L&S 33. C].

L&S traduzem igualmente D.L. VII. 63 [33. F]:

a sayable is what subsists in accordance with a rational impression

[8] Bett, nas notas 30 e 83 do livro II, ao comentar a sentença do estóico obscuro Basilides, “não existe nada incorpóreo” [II. 258], afirma que esta seria a “visão padrão” ou “estrita” dos estóicos, e que os incorporais apenas subsistem [huphistanai].

Long&Sedley, todavia, consideram que: “Given the Stoics insistence that only bodies exist, the incorporeal status of sayables and predicates has proved a difficult notion to accommodate. Why are they grouped together with place, void and time whose incorporeality seems unproblematic?” [pag. 199]

[9] O parágrafo VII. 54 em Diog. Laércios afirma que somente Crísipos, Antipatros e Apolodôros sustentam este princípio “standard” [Hicks]. Os “antigos estóicos” afirmam o cânone do orthôs lôgos (razão correta: o logos heraclítico sendo tomado como realidade objetiva, não como fundação subjetiva). Bôethos admitia vários critérios, e Crísipos teria se contradito em relação a seu critério inicial, segundo D.L..

As questões dos incorporais como subsistentes, e do critério da verdade para objetos do pensamento, que estão no emaranhado de Sex. Empíricos, devem ser reminiscentes de torneios dialéticos entre Crísipos, e seus pares socráticos, erísticos e megáricos.

[10] Em Sextos, Ad. Math. VII. 38:

As for the truth... the Stoics think that it differs from what is true in three ways, in being, in composition, and in power. In being, in so far as the truth is a body, while what is true is incorporeal. And reasonably so, they say; for the latter is a proposition, and the proposition is a sayable, and the sayable is an incorporeal. The truth, by contrast, is a body in so far as it is thought to be knowledge that is capable of asserting everything that is true. (Bett, I. 38)

[11] Zenão e Cleanthes, por sua vez, certamente estariam de acordo em que a linguagem é um corpo: um corpo-linguagem, ou estrutura antropológica.

[12] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, Ed. Perspectiva, 1974 (Logique Du Sens, 1969)

[13] Long & Sedley traduzem [D.L. VII. 53]:

Some things are also conceived by transition, such as sayables and place. [39. D (7)]

As traduções de Hicks, “there are notions which imply a sort of transition to the realm of the imperceptible”; e de Kury, “Algumas noções se adquirem por meio de uma espécie de passagem do perceptível para o imperceptível”, parecem terrivelmente em excesso para: noeîtai dé kaí katá metâbasin tina...

Devemos recorrer à diferença ser/estar em português, não diretamente dada em outras línguas.

[14] Nossa tradução para Long, p. 136. Em [L&S 33. B] com tradução diferente.

Nas Epistulae Morales a seu discípulo Lucillius, em verdade breves estudos concisos da tradição estóica, o parág. 13 citado [117], é precedido por:

2. We of the Stoic school believe that the Good is corporeal, because the Good is active, and whatever is active is corporeal. That which is good, is helpful. But, in order to be helpful, it must be active; so, if it is active, it is corporeal. They (the Stoics) declare that wisdom is a Good; it therefore follows that one must also call wisdom corporeal. 3. But they do not think that being wise can be rated on the same basis. For it is incorporeal and accessory to something else, in other words, wisdom; hence it is in no respect active or helpful.
11. The Peripatetics believe that there is no distinction between wisdom and being wise, since either of these implies the other also. Now do you suppose that any man can be wise except one who possesses wisdom? Or that anyone who is wise does not possess wisdom? 12. The old masters of dialectic, however, distinguish between these two conceptions; and from them the classification has come right down to the Stoics.
[transl. by Richard Mott Gummere, Loeb Class. Library, vol. 3, 1925]

Estes parags. da Epístola 117, sendo citada sempre a “escola estóica”, não figuram entre os frags. de Von Arnim. Aqui, Sêneca esclarece que o tema da predicação incorporal é uma introdução dos megáricos (mestres dialéticos). O título da [117] é Acerca da Ética Real  como Superior às Sutilezas Silogísticas.

Somente na Epístola 89, [Partes da Filosofia] é novamente a categoria dos incorporais uma vez mencionada: bodily vs. non-bodily [somatikê vs. assômatos, cf. nota 20 de Gummere].

[15] Galenos menciona: “...the over-refined linguistic quibbling [subterfúgios, sofismas] of some philosophers... I mean the quibbling way in which they generically divide the existent and the subsistent. [On Medical Method, 10. 155] [L&S 27. G]

E Bhéhier lembra que “Galien avait reproché à l’ecole de Chrysippe de s’être attachée au language plus qu’ aux faits.” [La Théorie des Incorporels, pag. 25]

[16] Galenos e Possidônios fizeram muitas restrições à teoria da alma e dos impulsos de Crísipos. (Long, p. 175) [Galenos, De Placitis Hippocratis et Platonis, IV e V]  [I. G. Kidd, Posidonius, vol. III – The Translation of the Fragments, Cambridge Univ. Press, 1999, frags. 31-35; 156-169] [L&S, 65. I]

Filosofia da Stoa - 2

 











Apolo, quando ainda muito jovem... Atica, circa 500 aC

 

Bibliografia Adicional: [1]

9) Rackham, De Natura Deorum, Marcus Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

10) Rackham, Academica, Marcos Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

11) Duhot, Jean-Joël, Epicteto e a Sabedoria Estóica, Ed. Loyola, 2006 (Bayard Éd., 1996)

12) McEvilley, Thomas, The Shape of Ancient Thought, Allworth Press, N.Y., 2002

 

O Universo é composto por uma força ativa, vital, dirigida; e por uma outra parte de substâncias indiferenciadas, passivas, que servem de matéria original com que a força ativa constrói e reconstrói o mesmo Universo, o qual ela dirige... [2]

Eles sustentam que há duas formas primordiais no universo, a forma ativa e a passiva. A forma passiva é uma substância sem qualidade, que é a matéria. A forma ativa é a razão que atua sobre a matéria, que é Deus. Pois este é eterno e é o demiurgo criador de todas as coisas no processo relativo à matéria. [D.L. VII. 134]

O termo universo é usado por eles em três sentidos: (1) O primeiro é o próprio Deus, que é idêntico à qualidade de toda a substância; este é indestrutível e não engendrado, sendo o artífice da ordem universal, o qual em períodos determinados de tempo absorve em si mesmo toda a substância, e novamente recriando-a a partir de si mesmo. (2) Em seguida, a ordem dos astros celestiais; e (3) em terceiro, o conjunto dessas duas partes. [D.L. VII. 137; 138]

 

O Filósofo está atento às teses anteriores que propõem o Noüs de Anaxágoras, que descrevem o Demiurgo em Platão, que tratam da Alma em Aristóteles, e que mencionam os deuses em várias tradições lendárias. Ele propõe uma síntese, concebe a força ativa como artífice, como fogo produtor heraclítico. E começa de novo a Filosofia, funda sua escola com uma única tese central, que vai se proliferando e se abrindo em várias direções:

[57] (...) Quanto à natureza, Zenão a define dizendo que é um fogo artesão, que procede metodicamente em seu trabalho de geração. Ele sustenta que a principal função de uma arte ou artesanato é a de criar e produzir, e que aquilo que no processo de nossas artes é feito pelas mãos, é feito com muito mais artifício pela natureza, por aquele fogo artificioso [ignem artificiosum] que é o mestre de todas as outras artes. [3]
Nessa tese, a natureza em toda parte é artificiosa, num certo sentido de ter um plano e um curso a seguir; [58] a própria natureza do mundo, que é capaz de conter e manter num abraço todas as coisas existentes, é ela mesma concebida por Zenão não apenas artificiosa, mas como de fato um artífice [artifex], tomando providências e planejando em seu trabalho tudo que possa ser útil e vantajoso. [4]
E assim como todas as outras substâncias são geradas, são mantidas e sustentadas cada qual por suas sementes, assim também a natureza do mundo possui aqueles movimentos de vontade, as inclinações e desejos, que são pelos gregos denominados hormae; e suas ações se seguem de modo adequado, do mesmo modo que nós nos movemos segundo nossas almas e nossos sentidos.
Sendo esta a natureza da alma do universo, esta pode ser designada como prudência ou providência (o que em grego se diz prônoia); e suas principais provisões, e aquilo com o qual ela mais se ocupa, são todas as necessidades para a permanência do mundo; para que nada esteja em falta; e acima de tudo para os mais exímios arranjos de beleza e ornamento. [De Natura Deorum, Livro II, xxii]

A tese da Alma e do Panteísmo em Aristóteles, por comparação, parece uma formulação incompleta e obscura, na medida em que este não resolve bem quer a distinção, quer a equivalência, entre o Noüs anaxagórico e a Psiquê jônica. (Isto porém, na mesma correlação em que Anaxágoras não o faz, segundo o comentário de Aristóteles.) Enquanto o Noüs é intelecto puro, puro produtor incorpóreo de formas platônicas, a Psiquê estaria em plena relação física com cada corpo ou substância. Novamente, é a divindade que não se distingue de um Noüs onipotente, onisciente, onipresente, que nada detém de suas relações com a matéria, de tal sorte que a tese, ou reconstituição, aristotélica não se resolve satisfatoriamente. Zenão de Citium dissolve o Noüs incorpóreo numa Psiquê universal ígnea e corpórea, que mobiliza outros corpos, e é executora da atividade diretora e pensante. Esta atividade da Psiquê é ação orgânica da divindade sobre todos os corpos e sobre o mundo. [5]

 

A dificuldade inicial para o corpo das leituras aristotélicas é sua concepção intransigente sobre o poder do conhecimento: desde sempre, a percepção já é conhecimento, o conhecimento já é fim último, o raciocínio ou a razão são conhecimento... a autonomia, a potência íntima do humano se atualizam pelo conhecimento. Desde de que a História da Filosofia se constituiu como disciplina crítica, cabe perguntar se o Racionalismo não seria dado como a perpétua reiteração deste dogma aristotélico. Ao passo que os empiristas se definem como as diversas variantes deste fanatismo fundador: representar não é “conhecer a verdade”; as ciências seriam o conhecimento possível: aquele que é necessário; ali onde interessa ao sujeito do conhecimento; sempre reformável.

As apresentações das teses aristotélicas obedecem a uma sequência que já se supõe consagrada: o conhecimento é o bem maior, virtude máxima / conhecer é saber o que uma coisa é / saber o que algo é, é ter o conceito próprio / essência, substância, causa, princípio, forma, potência... A filosofia se torna teste sistemático de validade para peças infinitas, a serem colhidas num reconhecimento de universalidades. Cada entidade, animada, sensível, inanimada, deve receber suas categorias, seus gêneros. Contudo os conceitos deslizam em feixes de sinônimos incessantes. O que seriam de início simples eîdos, figuras sensíveis, em formas iniciais de pensamento, a se insinuarem pacificamente na mente – agora são os termos de um esforço extenuante de integração, de validação exaustiva. As categorias devem ser credenciadas, é um tribunal da razão eficiente: o único recurso é mantê-las solidárias numa rede de silogismos.

A crítica renascentista em Francis Bacon é devastadora quando descobre a insensibilidade aristotélica para o poder da inferência e da síntese intuitiva. Não apenas o poder da intuição é afastado pelo Estagirita, mas a própria possibilidade da definição, da concepção do “sexto sentido”. [De Anima III, 1]

Para o estóico, o intelecto, a consciência, é “princípio”, somente enquanto isto resulta de uma função articulada permanente. O pensamento é efeito ou produto de uma ação orgânica da alma – sua porção mais excelente – e somente nesse sentido, um “princípio”.

Em Aristóteles o pensamento exige o conceito puro, perfeito, platônico, finito. O platônico-aristotélico pergunda pela Forma: é a essência, a quididade, o elemento que se reduz ao pensado, do qual cada ente seria portador. O estóico pergunta pela Forma: é o corpo, um orgão, um complexo organizado, que se descreve. Para o estóico, assim como para o empirista, as representações da Física são abstrações, somente na medida em que são graus de abstração...

A questão da alma e do corpo, o estóico a resolve sob a concepção inicial, mais simples, de um corpo mais capacitado (ígneo, mais energético) que envolve um outro corpo, subordinado. Porém, isto resulta de uma inferência sobre materiais pitagóricos, órficos, teosóficos, os quais podem servir de perfeito empirismo para filósofos naturais... As sínteses lógicas e intuitivas sobre estes materiais são o acabamento que permite ao filósofo estóico propor seu filosofema. Para Aristóteles, o processo é mais árduo:

(414a_14) Pois, dizendo-se a substância de três modos, como já mencionado, dos quais um é a forma, outro a matéria e, por fim, o composto de ambas – e, destes, a matéria é potência e a forma, por sua vez, atualidade –, e já que o composto de ambas é animado, não é o corpo a atualidade da alma, ao contrário, ela que é a atualidade de um certo corpo. E por isso supõem corretamente aqueles que têm a opinião de não existir alma sem corpo e tampouco ser a alma um certo corpo; pois ela não é corpo, mas algo do corpo, e por isso subsiste no corpo e num corpo de tal tipo... [De ANIMA, II, 2 - Apres., trad. e notas de M. Cecília Gomes dos Reis, Ed. 34 Letras, 2006]

De tal sorte que:

Bertrand Russell, em sua History of Western Philosophy, publicada em 1945 [vol. I], emite a opinião sobre a lógica aristotélica de que “sua influência hoje é tão contrária ao raciocínio claro que é difícil lembrar-se do grande progresso por ele realizado sobre todos os seus predecessores”. Russell atacou a noção de substância com críticas deste calibre: “quando encarada seriamente, é um conceito impossível de estar livre de dificuldades [...]; é simplesmente um modo conveniente de se reunir acontecimentos em feixes [...]; substância, numa palavra, é um erro metafísico, devido à transferência para a estrutura do mundo da estrutura de sentenças compostas de um sujeito e um predicado”. [idem, Introd., nota 23]

Trata-se aqui, segundo o filósofo-historiador inglês, não apenas da transferência de nossos poderes de significação à realidade do mundo, mas à sua organização, isto é, a sua “estrutura”… A crítica de Russell é essencialmente a crítica a toda a tradição idealista: os conceitos são requisitados como sínteses iniciais do pensamento (da imaginação), a serem aplicados para a compreensão do mundo e de seus elementos. A tradição empírica, por oposição, somente propõe um conceito depois da certeza de que este é uma sintese de observações – mas igualmente síntese de intuições e hipóteses. A capacidade da mente em buscar hipóteses ou raciocínios universais não diretamente dados na percepção também é, a seu modo, observada. [6]

Em Platão, o Logos é a pura abstração que precede o Real, e concede a possibilidade do conceito. No que se converte na tradição racionalista, desde Platão e Aristóteles, aquilo que dá origem, que opera sobre a Física, são essências, as quais são “causa de uma coisa existir”. Aquilo que apenas pode ser representado por uma idéia, em nossa mente. As essências se manifestam como propriedades diretas, instantâneas, sobre os corpos. No Estoicismo sempre corpos atuam sobre corpos. A percepção, o pensamento, são efeitos de luz e de pneuma, no interior da mente: orgão que é ativado pela alma, por sua vez, também orgão. Nesta natureza, cada movimento, cada transformação de um corpo é sempre causada por outros corpos. Num universo de início possuído por causas eficientes, nos termos aristotélicos, o Théos Universal é ainda possuído por interesses, que resultam nas causas formais, e nos finalismos. O Logos, nestes termos, é Lei, somente enquanto um resultado, ou efeito final cosmológico.

Sob o ponto de vista estóico, em Descartes, Spinoza, Kant, a noção de razão está na mesma condição inicial do racionalismo platônico: como abstração do princípio diretor. O Hegemonikôn como orgão diretor, refletor, comparador, ponderador (dos deuses ou humanos), produz o pensamento enquanto um funcionamento na mente individual. Nos autores racionalistas, a razão vem a ser o próprio pensamento, porém dado de forma substanciosa, ou como essência. Em Kant, a noção de razão evolui para capacidade, faculdade de juízo, mas permanece uma quididade.

O pensamento dado como substância divina; o espírito, ou a alma, dados como coisa-pensante; as Idéias entendidas como substrato da razão; a Razão, dada como propriedade, ou faculdade do Espírito... Nesta interminável sequência de silogismos e disjunções – de Platão a Descartes, de Aristóteles a Spinoza, de Aquino a Leibniz – não se vislumbra a noção de Razão enquanto processo – processos de juízo e de análise como funções psicológicas; a Razão como concertado empírico através dos séculos...

 

Notas


[1] As traduções de Diógenes Laércios [D.L.] aqui apresentadas são adaptações das traduções do grego de Kury, Hicks, Long&Sedley e Bréhier [Les Stoïciens, 1962], confrontadas com os originais, na medida em que os dicionários o permitem. O autor não reivindica conhecimento da língua grega. (Sendo assim, algumas transliterações podem sofrer de imperfeições.)

Da mesma forma, as citações de De Natura Deorum e Academica são vertidas para o português a partir das traduções do latim de Rackham, Bréhier, Long&Sedley e Francis Brooks (1894).

[2] A tradição do Vedanta, antiga Sabedoria dos Vedas na Índia, desenvolveu um modelo cosmogônico-teológico, no qual o Brahmãn, entidade cosmológica eterna, dá suporte à porção do Cosmos que está no devir. O Cosmos é composto por Vishnu, Brahmá, e Shiva. Vishnu corresponde a Khronos, deus temporal, primeira manifestação de Brahmãn. Brahmá nasce do umbigo de Vishnu, para criar o universo físico (um demiurgo, portanto), sendo pai e avô dos deuses e dos humanos. Em longos ciclos de bilhões de anos, Brahmá, sob a ação de seu duplo Shiva, passa por uma dissolução [ou ehkipyrosis], sendo reabsorvido em Vishnu. Vishnu adormece e se dissolve no Brahmãn. Num tempo incontável eles renascem...
Essa cosmogonia está nos tratados Puranas, escritos no séc. IV de nosso calendário, mas é difícil saber quando e como surgiram inicialmente. Não seria o caso de se enfatizar a difusão ou a precedência de um conteúdo (hindu vs. grego) para explicar sua origem [cf. a tese em McEvilley, vide intr. e cap. 1]... Ou enfatizar uma lógica interna das teologias, de modo que qualquer filósofo possa encontrá-las separadamente. Ou ainda o ofício dos Dâimones e Sîbilas, que poderiam ditar as Teosofias a seus adeptos em qualquer época ou cultura. – Trata-se de se considerar as três hipóteses simultaneamente.

[3] Pearson Z. 46; D.L. VII. 156

[4] Pearson Z. 48; D.L. VII. 86

[5] Em De Anima, Aristóteles tenta sintetizar a noção de alma divina e incorpórea, capaz de conferir a forma pensável de cada corpo ou substância, com a outra noção de alma física dos jônios. Ao invés de uma síntese, o filósofo macedônio embaralha indefinidamente as duas noções distintas. Entretanto esta síntese impossível parece ter sido consequência da formulação inicial de Anaxágoras: o Nôus, que é dado como forma pensante universal, como intelecto ou espírito pensante – simultaneamente é dado como força motriz dos corpos – porém jamais se mesclando com os corpos. [404b 1] [405a 13] [430a 15]

[6] Para o empirista (a partir de Bacon e Locke) os conceitos são sínteses de generalidades: não designam o que existe de modo direto visível, mas são dados como inferências. Contudo, as generalidades devem ser representadas sob um conceito único, porque estão unidas sob determinada forma, que dá a oportunidade do conceito; esta forma existe no campo mental, ela é representação... Por sua vez, esta forma é um novo corpo; não incorporal. A representação abstrata não é forma-essência, no sentido platônico, que se dá ao “entendimento”. É forma como corpo-articulado; esquema ou diagrama no corpo-linguagem.
E a representação, como imagem projetada na mente é, curiosamente, tal como em um cinema: a subjetividade projeta imagens, mas é também Quem assiste suas imagens...
O incessante torneio comparativo entre conceitos iniciais, que seriam absolutos, mas que em seguida perdem suas propriedades autênticas e seguras... serve no ofício aristotélico não para um encontro compreensivo com o mundo, mas para uma diversão tediosa de um Sujeito que já se quer “transcendental”.

Filosofia da Stoa - 3

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A tese do Deus Artífice pode ser expressa sob vários aspectos cosmológicos simultâneos:

1) Enquanto Deus produtor da física, como substância ígnea, de modo que o trabalho da força ativa é o trabalho entre corpos e causas eficientes. O pneuma, o aéter e o ígneo são variações do corpo do Theôs: as substâncias físicas vão sendo criadas pela força ativa, que é Zeus. Ele faz o nascimento das sementes no úmido e no quente.

2) Como pneuma pervasivo, que exerce o tônos.

3) Enquanto sustentador do Cosmos, como Tônos, força de coesão, tensão orgânica - que contém toda a Phýsis; ou como Hêxis, que contêm cada reino da natureza.

4) Como Hegemonikôn, orgão diretor universal. A inteligência humana é consequência dela reproduzir localmente o formato universal. O hegemonikôn é a parte mais excelente da Psiquê [Psikhê].

5) Enquanto lei e lógica universal final e inexorável, conforme sugerido por Herâcleitos em suas sentenças sobre o Logos. Mesmo a desmesura, o crime e o sofrimento cabem num logos final universal de reparos e medidas.

6) Enquanto Logos, como Justiça e Providência; isto é, uma administração geral do universo. Veja-se que, como Justiça, o Logos tem uma efetuação laboriosa, no tempo, do Deus e seus auxiliares. O Deus (enquanto Zeus, ou Brahmá) não seria agora um vivente fora do espaço e do tempo (enquanto o Theôs está fora do espaço e tempo, assim como o Brahman); não como um poder ab-soluto, ao contrário; como um poder que se dissolve (no espaço, na matéria, no tempo).

7) Enquanto Orthôs Lôgos: sendo dado como conceito da Lógica, mas com a consequência ética de pensamento correto, no sentido de se encontrar uma lógica já definida de modo objetivo e singular na natureza do vivente humano, em seu conjunto mundano, em seus deuses protetores. O humano observa, procura, reconhece, reafirma... Por diferença a uma lógica do sujeito transcendental, onde o humano é o sujeito da história e do conhecimento por excelência. [7]

8) Como Heimarmêne, Encadeamento do Destino, em que a ação divina inicial dá lugar a uma série de ações por parte de deuses e humanos. Estas ações novamente são recobertas, revisadas, pela ação dos deuses sobre os humanos; e pela ação do divino sobre os deuses – num regime incessante.

 

O que é próprio dos Estóicos, como doutrina ou dogma, é que a complexidade é sempre primeira no Cosmos (e assim de modo inteiramente oposto ao materialismo do séc. XIX ocidental). A inteligência, a sensibilidade, a organização, as potências, estão sempre, desde todas as origens, com as entidades ou viventes.

O termo demiourgós originalmente significa artesão, aquele que trabalha as matérias primas. É no Timeu platônico que assume o significado de criador que concede-a-Forma; de um Deus que atualiza formas abstratas, incorpóreas. E é com esse sentido que é adotado posteriormente para o Deus da Bíblia cristã. Porém, é exatamente este sentido platônico que Zenão está fazendo reverter para aquele da oficina “materialista” do Deus Artifex. [8]

Um Deus não apenas com muito mais atividades universais que o Deus agostiniano ou tomista, mas ainda, notavelmente bem mais complexo que o Deus do panteísmo spinozista. Enquanto o Zeus heraclítico-zenoniano, como porção do Theôs (o deus Pan) tem diversas funções e trabalhos em diversos setores, expressando seu logos, eventualmente sua vontade, em diversos lugares, o Deus spinozista é manifestado segundo os dois atributos conhecidos: do pensamento e da corporalidade. O pensamento é dado, cartesianamente, como substância, não como produto da ação imaginosa. A corporalidade, todavia, é destituída de sua substanciosa forma, se tornando a propriedade da extensão, tornada essência. [9]

O monismo segundo o qual os Estóicos são muitas vezes exemplificados é assim consequência desta tese teológica inicial, que se desdobra em vários aspectos e modalidades. Desde o início, a tese de uma divindade panteísta produtiva, eficiente, praticante. Se dissolve pelo universo; se ocupa, resolve conflitos; não uma filosofia do Ser divino, mas uma filosofia da Práxis universal. Nesta práxis, as ações humanas, e dos deuses, fazem parte de um Encadeamento: não há que se deter na questão grandiloquente do “livre arbítrio”, mas na consideração de um âmbito de possibilidades, em que os humanos e deuses têm uma série de opções em fazer ou não fazer, dentro de um quadro de disponibilidades iniciais. Sobre as ações de todos os viventes, o Artífice Universal refaz as suas opções, suas apostas. [10] Assim que a Heimarmêne, que é o Destino, é igualmente um desencadeamento: do Logos, de uma disposição inicial... à qual, em um Tempo, todos retornam...

 

É inútil dizer que Zenão repete, ou que desautoriza, Platão e Aristóteles. Ele, que recebia quando jovem de seu pai os livros atenienses, é um típico estudante de Filosofia, e como tal um analista histórico e sintetizador teórico. [11]

Em Academica I, na versão construída por Cicero, o grande autor romano Varro está fazendo a descrição da fundação filosófica de Zenão:

[35] Já Polêmon havia tido alunos diligentes em Zenão e Arcesilaos; porém Zenão, que precedia a Arcesilaos em idade, sendo um dialético  bem mais sutil e um pensador refinado, instituiu uma reforma no sistema daquela escola.

Zeno and Arcesilas had been diligent attenders on Polemo; but Zeno, who preceded Arcesilas in point of time, and argued with more subtilty, and was a man of the greatest acuteness, attempted to correct the system of that school.

Iam Polemonem audiverant assidue Zeno et Arcesilas; sed Zeno, cum Arcesilam anteiret aetate valdeque subtiliter dissereret et peracute moveretur, corrigere conatus est disciplinam.

Zenão teria instituído uma reforma no sistema filosófico da academia platônica, conforme o que ele herdara de Polêmon. Esta seria a recordação de Cicero, para o que teriam sido os ensinamentos de Antiochus aos jovens romanos Varro, Cicero, etc, quando estudantes de filosofia grega.

Sextos Empiricos sugere que a caracterização da primeira academia (no período que se segue a partir de Platão) feita por Antiochos, seria uma versão estóica da herança platônica, não simplesmente um “retorno” de Antiochos à dogmata da primeira academia, depois de sua polêmica célebre com Philo de Larissa. Philo havia se convertido à versão socrática e ceticista da segunda academia, adotada por Arcesilaos quando se tornara Escolarca. [12]


A Filosofia Estóica é fundada pelo Zenão de Citium (cidade grego-fenícia na atual Chipre) próximo a 302 ou 301 a.C., em Atenas [13], com esta revisão da tradição jônica, platônica, aristotélica, na forma de um constructo unificado, atraente para os alunos. Para a pedagogia da nova Escola, as partes solidárias são desmontadas como séries analíticas separadas. A divisão tríplice em Lógica, Física, Ética, presente em Xenocrates, é admitida, mas ela supõe agora um poliedro, o qual, sendo observado por vários ângulos, permite ver um mesmo núcleo, aceso, irradiante, ao centro...

A Filosofia é composta por proposições iniciais, apresentadas de modo esquemático: O sentido de uma escola de Filosofia é a demonstração dessas proposições ao longo do tempo. Este sentido é estranho ao Socrático: não se trata de (se) apresentar proposições que possam ser de imediato comprovadas, nos termos “dialéticos”; ou de se duvidar de imediato das proposições empíricas que se apresentam, no modo cético. A justificativa inicial para as proposições resulta de uma síntese:

1) análises dos materiais históricos, empíricos, de um povo;

2) um sentido intuitivo;

3) e um processo sintético, por direito de inferências.

E o que será a disciplina da Filosofia senão este processo, como uma pauta em três latitudes simultâneas?

 

Notas

[7] [cf. Acad. I, x:] Zenão herdou esta noção unitária da virtude, tón kalôn, da escola de Sócrates, através de Antístenes.

[128] ... Cleanthes e seus adeptos afirmam que temos de fazer uso constante da excelência [aretê], pois não se pode perdê-la, e o homem excelente não renuncia em caso algum a servir-se dela, que é perfeita. A justiça existe por natureza, e não por convenção, da mesma forma que a lei e a reta razão [orthôs lôgos], como diz Crísipos em sua obra Do Belo.

[88] Por isso o fim supremo pode ser definido como viver segundo a natureza, ou, em outras palavras, de acordo com nossa própria natureza e com a natureza do universo, uma vida em que nos abstemos de todas as ações proibidas pela lei comum a todos, idêntica à reta razão difundida por todo o universo e idêntica ao próprio Zeus, guia e comandante de tudo que existe. [Kury, VII]

Desse modo é dado o sentido de “seguir as ordens da Natureza”, conforme em Academica I, v:

And for the first of these sections, the one dealing with the right conduct of life, they went for a starting-point to nature, and declared that her orders must be followed...

Qualities conducive to the comprehension of virtue; these they divided into gifts of nature and features of the moral character ...

To the moral character they deemed to belong the interests or habit which they moulded partly by diligent practice and partly by reason... [Rackham]

Nietzsche zombava da pretensão estóica em “ser conforme”, e “obedecer”, à Natureza. Para os pensadores decididamente ateus do séc. XIX, o natural seria sinônimo de “selvagem”: seguir os instintos, pulsões ou trieben; aceitar o inconsciente libidinal. Sendo leitor de Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres em seus mínimos detalhes filológicos, o filósofo da Will zur Macht parece não dar importância aos parágrafos VII. 88, 128 da obra de Laércios, que é fonte de referência frequente em seus primeiros semestres de aulas sobre os pré-platônicos: The Pre-Platonic Philosophers, F. N., Translated from the German by Greg Whitlock, Univ. Illinois Press, 2001.

[8] Em algumas passagens do Timeu em que Platão admite metáforas de oficina-de-artesão, como em [33.b], na qual o demiúrgo usa “um torno” para arredondar o conjunto do ser-vivo, seu material de trabalho é ainda de puras abstrações, as quais são paradeigmas [28.a]: o Número, o Mesmo, o Ser, o Outro, o Semelhante.

[41.d] Assim falou, e, voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura, deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira; porém, comparativamente à primeira mistura, esta não ficou com o mesmo teor de pureza, mas sim com um segundo ou terceiro grau. [Timeu-Crítias, Coimbra, 2011; trad., apres., e notas Rodolfo Lopes]

Depois de criar os deuses, que são imortais enquanto “ele quiser”, e de semear as almas nos astros, o demiúrgo encarrega aos deuses [42.d] a criação das três espécies corporais mortais, as aladas, as que nadam, e as que andam sobre a Terra [40.a]. Após isso, ele se mantêm exterior ao mundo criado, em seu estado de perfeição ontológica.

Os mortais, que obtém graus de imortalidade--mortalidade, na medida em que são racionais ou irracionais; na medida em que habitam o Ser-uno, ou experimentam o Devir com seus corpos... retornam a vidas mais perfeitas em seus “astros de origem” [42.b]; ou, como “negligentes, imperfeitos e dementes”, retornam ao Hades [44.b], a repetir seus hábitos.

O texto platônico da criação universal nestas passagens faz supor uma repetida mescla de temas órficos, pitagóricos, iniciáticos, os quais não seriam estranhos a seus equivalentes teosóficos orientais. No Timeu os temas teosóficos reaparecem misturados com termos do racionalismo eleático. De acordo com McEvilley:

Orphism is the great mystery of Greek Philosophy. “Without Orphism”, a modern scholar claims, “we cannot explain Pythagoras, nor Heraclitus, nor Empedocles, and naturally not Plato and whatever was derived from him.” [Citando Giovanni Reale, A History of Ancient Philosophy, 1987]

“Whatever was derived from him” is a vast category indeed if one thinks of the famous observation that all western philosophy was a series of footnotes to Plato. The claim seems overstated, though, in that Plato’s Orphism does not seem to have much to do with, say, his analytical approach... Plato’s Orphic side coexisted with his logical and analytical side, though they do not seem ideally compatible. [Cap. 7]

Em [32.b] o demiúrgo tem seu raro exemplo de trabalho com a física das substâncias: do fogo, da água, do ar, e da terra, misturando-as segundo a proporção numérica ideal, obtendo uma solidariedade amistosa [philia], para dar nascimento ao “corpo do mundo”, e a um “céu visível e tangível”.

[9] Na ética medieval católica, a plena adesão pela fé recobre o modelo teológico insípido, de um Deus sempre transcendental e absoluto. No spinozismo, a pura liberdade de ser consagra toda a ausência de finalismo e encadeamento. A noção de liberdade é elevada à categoria de um idealismo perfeito.

O Deus Pan de Spinoza, visto como notável originalidade para sua época, nem grego, nem hebreu, nem cristão, tem sua energéia ou manifestação apenas segundo o exercício de dois (ou mais) atributos co-extensivos: a extensão e o pensamento; e segundo um poder sempre “infinito”, indefinido, de liberdades nos modos ou afetações recíprocas entre seres, corporificados e dotados de “razão”, portanto de escolha, etc... Uma Divindade que se quer geométrica, dinamizada, deslizante... que entende a expressividade como puro movimento; suas inflexões, limites.

[10] O fragmento de Heracleitos [D.K. 94] “Hélios não ultrapassará seus limites; do contrário as Erinýas, auxiliares de Dikê, saberão encontrá-lo” [O Logos Heraclítico, Damião Berge, I.N.L., RJ, 1969], dá idéia de uma sucessão contínua de atos de revisão, ou sucessão jurídico-administrativa do Universo: mesmo o Sol poderia pretender extrapolar seus poderes; logo as Erinýas apareceriam para verificar o que está acontecendo; as Erinýas são auxiliares de Dikê, a Justiça, e Dikê é auxiliar de Zeus.

[11] Em Diog. Laércios:

[31] ... Em sua obra Homônimos, Demétrios de Magnesia relata que Mnaseas, o pai de Zênon, sendo um mercador, vinha frequentemente a Atenas, e de lá levava muitos livros socráticos para seu filho ainda menino. Por isso, antes mesmo de deixar sua pátria, já tinha uma formação filosófica.
[32] Sendo assim, chegando a Atenas, encontrou-se com Crates. Parece ainda, segundo Demétrios, que ele já havia definido o fim supremo, enquanto os outros filósofos divergiam em suas opiniões. [Kury, VII]

[12] Em Academica I, a versão de Antiochos sobre a primeira academia está na numeração de origem [15-32], sobre o Liceu em [33-35], sendo a doutrina de Zenão apresentada em [35-42], caps. X e XI. Rackham esclarece que Cicero está escrevendo com os textos de Antiochus à sua frente. Para efeito dramático ele apresenta seus discursos, de Varro, de Lucullus, como se fossem memórias de diálogos com o mestre estóico-platônico Antiochus de Ascalon. Antiochus havia escrito o Sosus, em Alexandria, para contestar seu ex-professor Philo de Larissa. Na versão ceticista Platão, Aristóteles, Estóicos e Epicuristas eram considerados "dogmáticos"... Cicero era seguidor dos Céticos-Socráticos: Arcesilaos, Larissa, Carneádes, Clitomachus.

Em seu Esboços Pirronianos [Outlines of Scepticism, Annas& Barney, Cambridge, 2000, Book I], Sextos Empíricos registra:

[235] ... Antiochus brought the Stoa into the Academy; for he tried to show that stoic beliefs are present in Plato.

[13] Conforme Hicks, a descrição da Galeria Pisianax ou Galeria das Pinturas (Stoâ Poikîle), na praça central de Atenas, corresponde a uma colunata [colonnade], tendo uma parede de fundo com as pinturas de Polygnotos. Era local solene, de valor artístico e histórico. (Os Trinta Tiranos teriam se reunido na Stoa para comandar a execução dos derrotados no conflito com Esparta, e não a execução teria ocorrido ali.) A tradução do termo stoa para porticus no latim, deu origem à tradução “porch” no inglês, e ao uso de “pórtico”, no português e no espanhol.

 

O Futuro enquanto História

 

Coletânea Pontos de Fuga – Um Seminário Transdisciplinar

da Universidade Livre do Rio de Janeiro [1994, Parque Lage]

Taurus Editora, R.J., 1996

Ciro Moroni Barroso

[pág. 71] [revisto 1999]


[3]

Estas observações todas até agora se fizeram necessárias porque é sobre estas condições que se impõe um fato de grande significado, que há muito faz parte de nosso devir humano planetário, mas que somente agora começa a ingressar, aos tropeços, na historicidade.

Este fato é a descoberta de que a humanidade terrena, com seu histórico de escassos três mil anos, é parte de uma outra humanidade mais ampla, mais antiga, mais numerosa, que se estende por diversos mundos no Cosmos. Estamos falando aqui não de “alienígenas”, mas de seres sob a condição geral de humanos, o que portanto amplia nossos horizontes de história, cultura e civilização. A interação com representantes de algumas dessas civilizações, de modo ocasional ou sistemático, de uma forma ainda velada, quebra, de saída, alguns dos modelos científicos de nosso tempo... Razão pela qual ela tem sido tratada sempre de forma eufemística, recalcada, conjectural, amadorística, em nossos meios de comunicação. Termos exóticos como “humanóide”, “ufos”, “fenômeno-ufo”, e mesmo “extraterrestre”, são exemplos de nossa primitiva hesitação semiológica (é brutal a assimetria conceitual terrestre/extraterrestre do ponto de vista de uma humanidade cósmica). Paradigmas até agora irretocáveis estão sendo postos em cheque: a origem da vitalidade em termos biológicos; a origem do humano na evolução animal natural seletiva; a velocidade da luz como velocidade física máxima; e a identificação da materialidade que nós é fisicamente disponível como toda a física do universo (alguns visitantes mencionam outras camadas, ou estados energéticos, para a manifestação dos mundos físicos). [2]

Uma tal agressão à ciência normal, só poderia ter como efeito uma crise do paradigma, tal como observado por Thomas Khun, na qual “as anomalias não são tratadas como contra-exemplos do paradigma”. O paradigma normalizado não será comparado com os contra-exemplos, mas somente com um novo paradigma, este ainda não formulado. E esta crise, sem dúvida, ameaça todo o “comprometimento profissional” dos cientistas, seus papéis sociais, toda sua base epistêmica. (A Estrutura das Revoluções Científicas, págs. 31, 107/108) [3]

A crise científica latente, por sua vez, é condicionada por uma formidável tensão ao nível das super-estruturas políticas, com um processo de ruptura versus cerceamento que em nada fica a dever ao processo inquisitorial imposto pelo poder católico a Copérnico, Galileu e Bruno. Esta tensão cresce de maneira decisiva a partir de 1952, quando a Força Aérea norte-americana começa a relatar a presença numerosa de “discos-voadores” nos céus nacionais, recebendo em seguida um “cala-boca” da Agência Central de Inteligência, que impôs a partir daí o uso do eufemismo “UFO” (O Almirante Hillenkoeter, primeiro Diretor da CIA de 1947 a 1950, dirigiu-se ao Congresso em 1960, junto com um grupo de oficiais da reserva dissidentes, para denunciar o fato). [4]


[2] Magocsi, Oscar. Minha Odisséia em Naves Extraterrenas, Ed. Freitas Bastos, R.J., 1993
[3] Ed. Perspectiva, S.P., 1987
[4] The New York Times, 28 de fevereiro de 1960


É incrível que, assim como em plena Renascença, o obscurantismo católico medievalesco tenha sido capaz de exercer seu poder de veto, atrasando um salto significativo em termos de Ciência, assim também em pleno século XX “moderno”, o interesse de dominação de uma claque obscurantista faça repetir a cena. Desde o pós-guerra, grupos de elite norte-americanos, europeus e soviéticos dispõem de conhecimentos científicos e tecnológicos, muito além da imaginação do cidadão comum, capazes de fazer corar os autores de ficção científica, e de enrubescer de vergonha a própria comunidade científica, isto é, a maior parte dela que não foi cooptada no processo. Por esta razão, é preciso alertar estas partes, com o uso de uma linguagem apropriada.

Esses fatos, por mais extraordinários que possam parecer, não são inusitados: se modelos em Física e em Biologia são quebrados, exemplos em Antropologia e História retornam. Num processo anterior, os índios estão à beira da praia e as caravelas se aproximam, abrindo conflitos simbólicos e estruturais... Algumas estruturas terão colapso, contrastes etnológicos serão suscitados, centramentos e descentramentos, até que uma nova filosofia antropológica possa reinar, dando conta de outras escalas gulliverianas. [5]

O problema até agora é que este acontecimento não penetrou em nossa superfície histórica, sendo apreciado apenas de formas “alternativas”, messiânicas, intempestivas, no vácuo oferecido pela pós-modernidade. Por um lado a ausência de estruturalidade; por outro, o anúncio, feito sempre pelas correntes de futurismo místico-esotérico em moda, de uma única e majestosa estrutura cósmica totalitária e estática.


[5] No sentido de novas séries de diferença e similaridade.
Em seu Viagens de Gulliver a Diversas Regiões Remotas do Mundo, 1726, o irlandês Jonathan Swift faz a fábula filosófico-satírica do descentramento antropológico europeu como resultado das navegações.
Para dar conta da temática que se segue neste artigo, o autor fez em Gulliver, 1992 (Ed. Record/Nova Era, R.J.,1999) uma reapropriação da fábula swifteana, em termos de um conteúdo aparentemente ficcional, que envolve um documentário histórico. A parte aparentemente ficcional tem assim um caráter de fábula, e não de variante de science-fiction, tal como foi sugerido em leituras apressadas

 

[4]

Hans Staden, ao retornar em 1555 de suas incríveis aventuras entre índios, portugueses e franceses no sudeste brasileiro, escreveu na conclusão de seu livro de viagens, editado em Marburgo, Hessia, 1557:

“... Posso bem imaginar que o conteúdo deste livrinho pareça a muitos fantástico. De quem a culpa? De resto, não sou o primeiro e nem serei o último que pode conhecer tais travessias, terras e povos.(...) ninguém admitirá que aqueles que arriscam a vida e enfrentam a morte sintam do mesmo modo que aqueles que se conservam à margem, observando, ou aqueles que ouvem contar.(...) Mas tenho por verdadeiro que muitos honrados homens de Castela, Portugal, França, alguns também de Antuérpia, do Brabante, que estiveram na América, podem testemunhar que é assim como escrevo. Para aqueles porém, que não conhecem a terra estrangeira, me apóio nestes testemunhos, e principalmente em Deus.”

Antes que a Etnografia existisse, para fazer parte das disciplinas constituídas no Iluminismo e na Modernidade, existiram os Relatos de Viagem do Renascimento, que se constituíram no solo da perplexidade, do fabuloso, do épico. Ao serem apresentados publicamente, estes relatos enfrentavam o problema da credibilidade do relatado e do relator. Assim foi com Marco Pólo, assim foi mesmo com Heródoto. As questões em torno da autenticidade, da veracidade, da verossimilhança, e da verificabilidade do relato, fazem parte assim do solo epistêmico inicial sobre o qual serão fundadas as disciplinas da História, da Etnografia, da Geografia.

Nesta fase era necessário garantir a idoneidade, até mesmo a filiação religiosa correta, do relator, pré-etnográfo. É assim que o Dr. Dryander, ao apresentar (Marburgo, 1556) o livrinho de Staden ao Príncipe Felipe, Landgrave da Hessia, Conde de Nassau e Saarbrücken, clama pela integridade moral e religiosa do viajante, acrescentando: “Não se deve pois concluir, pela circunstância de que a grande massa tem por falsa as narrações desta sorte, que elas na verdade não possam ser exatas. Como não estaria mal a ciência astronômica se ela não pudesse fazer cálculos certos sobre todos estes corpos celestes e não pudesse prever com segurança o dia e a hora dos eclipses, isto é, das trevas do sol e da lua. (...) Ora, diz o povo, quem esteve no céu, para tudo ver e medir? A resposta só pode ser: a experiência cotidiana confirma as conclusões(...). Com a ajuda da ciência celeste, da astronomia, e da geometria, calcula-se mesmo a circunferência, redondeza, grandeza e extensão da Terra. Todas estas cousas o homem simples não conhece, assim como bem pouco nelas acredita. (...) Que, porém, gente prezada e muito instruída duvide ainda de tais fatos, cuja veracidade está provada, é tão vergonhoso quão lamentável, pois que o homem simples, guiando-se por eles, acha confirmação de seu erro e diz: Se isso fosse verdade, este ou aquele estudioso não teria contestado.”

A fase pré-etnográfica, assim, facilmente se resolve, na medida em que a América, a África, a Ásia, lá estão, expostas à empiria histórica. Com a multiplicação dos relatos no tempo, a comparação entre eles se torna uma nova disciplina de conhecimento. É assim que a ênfase na autenticidade, na positividade do relato, cede lugar à questão da interpretação dos relatos. Ou seja, é toda a nova cultura da inferência que se impõe. As etnografias podem então se afirmar e se tornar etnologias, na medida em que, com qualquer grau de falsificação ou veracidade dos relatos, um padrão de coerência, uma estruturalidade, podem ser descobertos em cada conjunto empírico.

 

[5]

Essas observações sobre o Renascimento, que podem parecer óbvias, não são óbvias, nem merecem atenção crítica no que diz respeito a nós mesmos, habitantes, incultos ou científicos, do mundo ocidental moderno. Isto é, quando são apresentados relatos de viagem a outros sistemas habitados entre as estrelas. O próprio termo “extraterrestre”, conforme já notado, não resiste à mínima epistemologia etnológica. O "nós", de nosso conjunto etnológico, ocupando a metade do conceito, enquanto “todos-os-outros” ficam com a outra metade... A vasta habitabilidade de outros sistemas estelares, não segundo leis biológicas, principalmente por humanos de nosso tipo, seria facilmente demonstrável em termos científicos a esta altura, se houvesse o interesse científico para tal conhecimento. O fato de que civilizações humanas ancestrais nos observam desde os albores de nossa história, fazendo pequenas contribuições aqui e acolá, é bastante bem documentado em vários níveis, e seria igualmente de fácil demonstração. Principalmente o fato de que, durante o século XX, alguns destes grupos (Federação Galáctica como são conhecidos) se meteram decididamente em nossos negócios políticos e militares, abrindo um certo processo de colaboração e co-evolução, o que, se faz retornar algumas questões de antropologia e humanismo, certamente não faz retornar nos mesmos termos de Iluminismo ou Modernidade.

Os cientistas, os intelectuais, os operadores da cultura pop, e o grande público mais ou menos inculto, entretanto, se acostumaram a aceitar estas informações em termos de perguntas pré-etnográficas do tipo "será verdade mesmo?", "Você já viu algum?", "Por que eles não descem logo?". A questão do "descer logo" é respondida, através de intermediários pré-etnográficos ou plenamente etnográficos, da seguinte forma: "Se vocês terrenos estivessem preparados do ponto de vista coletivo, isto é, social e cultural, nós poderíamos descer logo, mas do jeito que as coisas estão, nossa descida pública ocasionaria um tremendo descontrole no mundo de vocês, o que seria um atravessamento ético. Enquanto isso – continuamos com nossas ações e influências discretas". É a mesma lógica de nosso civilizado ao contatar silvícolas, evitando desconstruir seus pequenos mundos.

A questão que se coloca portanto – nos programas sensacionalistas de televisão – do acreditar, "você acredita em... discos voadores, assombrações, duendes, ectoplasma, etc?", é estúpida e bizantina. A fase pré-etnográfica destes relatos já poderia certamente ter sido superada. Se fôssemos examinar a credibilidade de três fontes exemplares, a de George Adamski (California, anos 50), a de Elizabeth Klarer (África do Sul, anos 50) e a de Oscar Magocsi (Canada, anos 70), verificaríamos que nos três casos a idoneidade, a integridade biográfica, e a integridade dos relatos, foi constatada em cada caso por parte daqueles pesquisadores civis (ou testemunhas) que se ocuparam deles diretamente. Os relatos destas três fontes, entretanto, dentro de uma política que é difícil de ser abordada num pequeno artigo, desagradaram o interesse de determinados setores de poder estratégico e inteligência internacional. [6] Esta é a razão para uma subsequente descaraterização, em graus diferentes, destas três fontes, artificialmente criada, e que foi infelizmente propalada por aqueles pesquisadores civis que não se ocuparam deles diretamente.

Num enredo terrível ainda a virar historicidade, o que seria factível se houvesse vontade política para tanto, George Adamski foi o que mais diretamente se envolveu com os conflitos de bastidores que atingem até nossos dias facções terrenas em contato com facções extraterrenas, sendo sua credibilidade pré-etnográfica por isso ainda mais dificultada. Adamski se tornou intermediário entre um grupo humano de extraterrenos louros de média estatura e uma série de lideranças governamentais, entre eles John Kennedy, o Papa João XXIII, os Reis da Holanda, e algumas hierarquias do Pentágono. Os visitantes em questão, de início fizeram uma aparição ritualística no deserto do Arizona em 1952, que foi extremamente bem documentada e fotografada. (Depois quis-se dizer que Adamski tinha “mania” por fotos, quando estas se mostraram tecnicamente incontestáveis). As fotos e os depoimentos aparecem em Flying Saucers Have Landed. [7]

Em seguida, na medida em que sua semelhança conosco permitia, estes visitantes fizeram alguns trabalhos políticos de bastidores, o que está documentado de forma detalhada em George Adamski – The Untold Story, também cheio de fotos e testemunhos, livro este que está sintomaticamente fora de circulação na Inglaterra, apesar de seu grande interesse e qualidade. [8] [9] O esforço de Adamski foi derrotado por facções de inteligência internacional, na época em que a CIA era importante nisto, facções que, hoje em dia, se sabe terem feito acordos secretos para cessão de tecnologia com grupos extraterrenos que se opõem à política e à ética dos "federados".

Elizabeth Klarer teria, sozinha, credibilidade o suficiente para marcar a História. Seu processo de interação com um visitante de Alfa Centauri teve respaldo e acompanhamento da inteligência britânica nos anos 50, depois que, durante a Segunda Guerra, ela e seu esposo militar inglês haviam servido na Base Aérea De Havilland, próxima a Londres. Antes disso, ao voar com seu esposo na África do Sul, eles tinham sido seguidos por um disco-voador. Klarer era descendente de uma tradicional família aristocrática inglesa, com excelente padrão de cultura, sendo formada em Meteorologia por Cambridge, com formação musical, e sendo ainda habilitada como piloto de aeronaves. O acompanhamento do serviço secreto britânico se deu porque eles perceberam antecipadamente, devido ainda às capacidades psíquicas que ela demonstrara, que ela poderia ser um elo de contato com alguma alta civilização estelar. Na África do Sul, posteriormente, também o serviço secreto soviético seguia Elizabeth, tentando lhe extrair os segredos.

Em seu livro Beyond the Light Barrier, [10] ela conta como foi levada a visitar o planeta Meton, em Alfa Centauri, habitado por uma rica e avançada civilização, capaz de fazer saltos quase instantâneos de teletransporte de lá até aqui. A raça deles é do tipo nórdico, de grande estatura e impressionante longevidade, e esteve presente em nosso sistema solar em outro ciclo. Klarer se envolveu amorosamente com um camarada chamado Eikon, que a visitara diversas vezes em sua fazenda na África do Sul, e teve com este um filho, o qual vive até hoje em Meton. Seus encontros foram registrados por muitas testemunhas ao longo dos anos, o que inclui a imprensa e a Força Aérea sul-africanas. Apesar de sua credibilidade, Klarer, que faleceu em 1993 aos 83 anos, foi retratada na revista Manchete com uma ridícula reportagem em que ela aparece no meio do deserto como uma velha maluca, com o retrato de Eikon, onde a legenda dizia que ela "esperava a volta dele", o que não era verdadeiro: Eikon e o filho, Ayling, visitaram Klarer várias vezes, havendo sido prometido a ela uma nova vida em Meton, no sentido reencarnacional (sentido este que é adotado pelas diversas culturas humanas nos outros sistemas de que se tem notícia).


[6] Ver Gulliver, 1992, Livros 2, 3 e 4.
[7] Co-autoria com Desmond Leslie, Neville Spearman, London, 1953, 1970. Edição brasileira: Editora Globo, Porto Alegre, 1957
[8] Lou Zinsstag& Timothy Good, 1983, Ceti Publications, 247 High Street, Beckenham, Kent BR3 1AB, England. Quando um editor carioca escreveu para a editora inglesa, recebeu a estranha explicação de que Untold Story não estava “disponível para novas edições”.
Zinsstag, linguista suiça, sobrinha de Carl Gustav Jung, foi cooperadora da rede mundial de Adamski nos anos 50/60. Timothy Good, violino da Orquestra Sinfônica de Londres, um dos melhores pesquisadores civis no assunto, é autor do excelente Above Top Secret, 1987, Sidgwick and Jackson, London, com 440 páginas de análises e mais 100 cópias de documentos secretos, obtidos judicialmente, do Pentágono, CIA, NSA, NASA, USAF, etc, sobre os discos-voadores e o encobrimento oficial das informações.
[9] O repórter João Martins publicou na revista O Cruzeiro, ao longo de 1954, várias reportagens sobre Adamski e outras pessoas que, nos Estados Unidos e no Brasil, tiveram encontros com "extras" humanos, tal como Adamski. Em 1955, num Congresso na California, ele fotografou uma mulher, de bela feição, suspeita de ser do grupo extraterreno ali em circulação. Estas reportagens estão publicadas em As Chaves do Mistério, João Martins, 1979, Hunos Editorial, R.J.. A foto da mulher é reproduzida em Sinais Estranhos, de Fernando C.N. Pereira, da mesma editora.
[10] Howard Timmins Publishers, Cape Town, 1980. Publicado na Alemanha pela Wenta Verlag, Wiesbaden. Ver também UFOS – Contatos Africanos, Cynthia Hind, Francisco Alves, R.J., 1987, caps. 3 e 4.


A narrativa do canadense Oscar Magocsi (com quem este articulista teve a oportunidade de se corresponder), é mais amena e está contata num livro de fácil acesso (vide [2]). É importante notar que Magocsi não modificou sua vida de técnico da TV CBS de Toronto depois que retornou de suas experiências com seres de alta evolução humana, nem se tornou guru, nem seus livros têm grande vendagem. Alguns de seus relatos são realmente incríveis, porém não diferem estruturalmente dos outros relatos (com experiências dimensionais ou transfísicas desse tipo).

A fase pré-etnográfica destas interações, entretanto, seria facilmente resolvida, na medida em que se fizesse a análise dos inumeráveis relatos de viajantes terrenos a outros mundos, ou de trocas de informações de pessoas daqui com visitantes, e se fizesse ressaltar os padrões de coerência, a estruturalidade destes relatos. Somente no Brasil, são muitos os exemplos conhecidos pelos pesquisadores civis (que se auto-denominam de maneira tão caricata como “ufólogos” – o termo impróprio derivando do deslumbramento pré-etnográfico no qual os visitantes são tratados como parte de um indeterminado “fenômeno-ufo”): Artur Berlet, Dino Kraspedon, Antonio Rossi, Bianca, Carlos Paz Wells (peruano radicado em São Paulo, que descreve interações com visitantes provenientes dos satélites de Júpiter e de Alfa Centauri, assim como Kraspedon e Klarer), General Moacyr Uchoa (ex-professor da Academia das Agulhas Negras), Luiz Gonzaga Scortecci (espiritualista com formação científica, que dá boa interpretação de seus próprios contatos) e, como exemplo notável, o Juiz Freitas Guimarães, que foi Magistrado na Justiça do Trabalho, e era Professor de Direito na Universidade Católica de Santos em 1956, quando foi visitado na praia de São Sebastião e levado a um passeio na nave em que desceram, por dois tipos elegantes, telepatas, também nórdicos. Mesmo com toda sua credibilidade, e com um reconhecimento de seu contato por parte da FAB, o Juiz teve seus relatos desacreditados pelo grupo Time-Globo.

 

[6]

Todas essas etnografias ou relatos-de-viagem dão um mesmo quadro de interpretação científica: a) Que o universo se organiza em outros padrões de energia física desconhecida, o que modifica nossa variável para a temporalidade; b) Que não apenas o universo físico se manifesta em vários planos, mas igualmente a vitalidade; c) Que esta vitalidade cósmica deu origem à forma humana de maneira mais pré-organizada e mais complexa que a de nosso modelo biológico; d) Que a raça humana da Terra é observada por outras raças aparentadas.

É assim que se expandem, uma vez mais, as nossas singelas e autoconfiantes fronteiras de aldeia medieval. Concomitante a isso, novas acomodações, rachamentos, na superfície de nosso antigo, já uma vez seguro, saudoso continente etnocêntrico.