segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Filosofia da Stoa

















FILOSOFIA da STOA -- As Teses de Zenão e Cleanthes

(c) Ciro Moroni Barroso

Lançado no Rio de Janeiro em Agosto de 0019 por:

Editora 7 Letras

 

A Stoa Poikile

A Galeria das Pinturas [Stoâ Poikîle] no centro de Atenas, é o local de instalação da Stoa filosófica, próximo a 301 a.C., por Zenão de Cítium, um greco-fenício.

A doutrina dos Estóicos, portanto daqueles que ensinam na Galeria, era uma continuação, na Ética, da doutrina de Antisthenes, um severo socrático de três gerações anteriores, que ensinava uma filosofia de austeridade e firmeza de caráter: esta que recebeu o sentido posterior de “estoicismo”.

O jovem Zenão, filho de próspero mercador Fenício, havia chegado a Atenas uns 12 anos antes, se tornando estudante de Filosofia. Como estudante, ele propõe uma síntese que é a Filosofia original da Stoa: na Física e na Lógica, uma nova leitura de platônicos e aristotélicos, e na Moral, a orientação cínica de Antisthenes.

Cleanthes de Assos (na Trôada) era cinco anos mais novo que Zenão, e foi seu discípulo, havendo feito contribuições originais à Stoa, segundo o prof. Pearson. Ao passo em que as sínteses de Zenão resultam de seu esforço lógico sobre os autores, Cleanthes é um filósofo do tipo intuitivo, sendo sincero devoto da ordem dos deuses olímpicos. Sendo poucas as indicações biográficas, ao que parece Cleanthes era homem muito forte e auto-confiante [pugilista]. Após se dedicar a apreender com toda atenção o quadro filosófico que lhe desenhava Zenão, suas teses indicam um regime de estudos dos autores, e meditações contínuas.

Cleanthes foi autor de muitos tratados de física e lógica, incluindo um estudo em 4 volumes sobre Herácleitos [não preservado]. Seu Hino a Zeus é um marco filosófico/teosófico do paganismo. Segundo a tese em Duhot, tanto a tradução grega do Velho Testamento feita pelos sábios hebreus de Alexandria, quanto a mescla doutrinária-lendária dos primeiros cristãos, foram beneficiárias de muitas formas das doutrinas estóicas, de sua teologia, do Hino de Cleanthes, da ética de Epictetos.

Na Introdução de sua Coletânea de fragmentos dos dois fundadores da Stoa, o prof. de Estudos Clássicos de Cambridge A. C. Pearson sustenta que contribuições de inspiração heraclítica de Cleanthes, como a concepção do tonos, não confirmam a imagem de um filósofo de posição secundária. Nas leituras de Pearson, contrariando as leituras eruditas até o séc. XIX (e reassumidas por Arnim e Bréhier no séc. XX) não é Crísipos quem de fato estabelece o "Cânone Estóico". Este cânone seriam as teses de Cleanthes dando acabamento perfeito ao panteísmo dinâmico do iniciador Zenão.


 

 

 

 

 

 

 

 

A Coletânea de Alfred Pearson 1891


Principais Obras Citadas

1) Pearson, Alfred Chilton, The Fragments of Zeno and Cleanthes – with introduction and explanatory notes, Cambridge Univ. Press, 1891, 344 pags. New York Arno Press, 1973. The Cornell University Library Digital Collections, 2012
archive.org/stream/thefragmentsofze00zenouoft#page/n1/mode/2up

2) Arnim, Hans Von, Stoicorum Veterum Fragmenta, 1903, 1905, Berlim
archive.org/query=Stoicorum Veterum Fragmenta

3) Kury, Diôgenes Laêrtios - Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, trad. do grego, introd. e notas, Mário da Gama Kury, Edit. Univ. de Brasília, 1987.

4) Hicks, Lives of Eminent Philosophers - Diogenes Laertius, Robert Drew Hicks trans., Harvard Univ. Press. 1972. (First published 1925, Cambridge)
wikisource.org/Lives_of_the_Eminent_Philosophers_Hicks

5) Bett, Sextos Empiricus: Against the Logicians I, II [Ad. M. VII, VIII] Richard Bett trans.& editor, Cambridge Univ. Press, 2005

6) Bréhier, Émile, La Théorie des Incorporels dans l’Ancien Stoïcisme, Lib. Philosophique J. Vrin, [1908, 1928] 1997

7) Long, Anthony, Hellenistic PhilosophyStoics, Epicureans, Sceptics, Univ. California Press, (1974) 1986

8) Long, A.A. & Sedley, D.N., The Hellenistic Philosophers – Vol. I - Translations of the Principal Sources with Philosophical Commentary, 1987

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imperador Romano Marco Aurélio, séc. II. Militar e escritor estóico helenizado

 

Alfred Pearson escreve no prefácio de seu The Fragments of Zeno and Cleanthes que “No Neue Jahrbücher für Philologie do ano 1873 Wellman publicou um artigo sobre Zenão de Citium, o qual foi a primeira tentativa séria de discriminar os ensinamentos de Zenão daqueles da Stoa em geral...  E a primeira coleção completa dos fragmentos de [Zenão e] Cleanthes foi feita por Wachsmuth em dois programas da [Univ.] Göttingen, publicados em 1874-75.” [1]

Os Fragmentos de Zenão e Cleanthes do classicista britânico Pearson, por sua vez, foram publicados em 1891. Com estudo introdutório de 53 páginas e comentários escritos em inglês, os fragmentos (na maior parte citações de Diogenes Laércios, Cicero, Stobeos) aparecem nos originais latinos e gregos, sem tradução. [2]


Em 1903, o classicista alemão Hans von Arnim publica os dois últimos volumes de seu Stoicorum Veterum Fragmenta, a coletânea das citações gregas e latinas dos antigos mestres estóicos, incluindo, além de Zenão e Cleanthes, Ariston, Hêrilos, Persaios, Sfairos, Crísipos, e mais alguns sucessores deste último, Diogenes da Babilônia, Antipatros, Apolodoros, etc. Os fragmentos de Crísipos nesta nova coletânea, por serem mais extensos que todos os outros, deveriam ocupar todo o segundo volume (lógica e física) e o terceiro volume (ética e discípulos).

Uma vez que essa era a primeira coletânea completa dos fragmentos de Crísipos, e sendo já disponíveis os fragmentos de Zenão e Cleanthes nas coletâneas de Wachsmuth e Pearson, é compreensível que o primeiro volume da série, relativo a Zenão e Cleanthes (acrescido das citações biográficas), tenha sido lançado somente em 1905.

Em seu compêndio, Von Arnim utiliza somente o latim, e não o alemão, para o prefácio e as notas, sendo estes de ordem literária, e não histórico-filosófica. Seu Prefácio traz referência e reconhecimentos aos estudos de Wellman, Wachsmuth e Pearson.

Havendo Pearson apresentado um estudo sobre a filosofia estóica em sua coletânea dos fragmentos dos fundadores da Stoa, e sendo cada fragmento acompanhado de comentários filológicos e histórico-filosóficos em inglês (e alemão), e uma vez que são apresentadas em latim as coletâneas de Wachsmuth e Arnim, este último com breves comentários das fontes - seria de início necessário perguntar qual a razão para que The Fragments of Zeno and Cleanthes de Pearson tenha sido esquecido, quase nunca sendo citado como referência para o estudo dos fundadores da Stoa - ao passo que o Veterum Stoicorum Fragmenta de Arnim se tornou quase que exclusivamente a fonte de referência - ? [3]


É na Classical Review de dezembro de 1905 que aparece a resenha de Pearson sobre os 3 volumes de von Arnim:

[A obra] é representativa da melhor tradição acadêmica alemã... A coletânea, essencialmente, não é diferente daquela que foi por mim publicada em 1891. O arranjo do material passou por melhorias.
Quase nos parece que todo o cuidadoso escrúpulo por ele devotado na coleta de tudo aquilo que possa ter sido correlacionado a Crísipos tenha resultado de modo desvaforável em sua atitude com relação aos escolarcas anteriores. [4]

Em seguida Pearson apresenta uma sucessão de fragmentos atribuídos a Crísipos os quais, segundo ele, deveriam pertencer à seleção de Zenão. [5]

A observação de Pearson (e as de outros autores a seguir) nos sugere um aspecto crítico não reconhecido, que aparece implícito na importância central que Crísipos recebe como representante de primeira ordem da Escola dos Estóicos, a partir da edição de seus fragmentos por von Arnim. Principalmente a partir dos estudos de Bréhier [6], é comum a muitos estudiosos considerar que:

1) Crísipos de Solis (acme 240 aC), terceiro na sucessão da Stoa, tenha sido um expositor que teria dado continuidade e acabamento definitivo à fundação da Stoa;
2) E que a teoria do lektôn incorporal seria parte desse corpo coerente e histórico unificado - ou que esta estivesse presente desde o início da fundação da Stoa.

Como consequência da ênfase na obra de Crísipos, provavelmente sob a influência das leituras de Bréhier e da coletânea de Arnim, muitos  autores passaram a designar “os Estóicos”, ou a interpretação de suas doutrinas, supondo-se tacitamente as sínteses crisipianas como canônica desta tradição. Todavia, algumas passagens em Diogenes Laércios indicam que Crísipos de Solis teria abandonado a escola dos Estóicos, e se reunido aos seguidores do ceticista Arcesilaos. Insatisfeito com a canônica dos dois patriarcas anteriores, ele teria desenvolvido novas teses, ao procurar absorver, ou superar, o legado pirrônico, ceticista e megárico.

É nesse contexto que podemos considerar a muito referida tese do lektôn [predicação, expressão] enquanto “incorporal”, tese que tem a característica de ser uma contribuição original de Crísipos.

 

Notas

[1] Commentationes I et II Zenone Citiensi et Cleanthe Assio

[2] Pearson baseia seus estudos sobre a Stoa em Zeller, Philosophie der Griechen; em Hirzel, die Entwicklung der Stoischen Philosophie; e em Stein, die Psychologie der Stoa e die Erkenntnistheorie der Stoa, entre outros então recentes autores acadêmicos teutônicos.

[3] Deve se explicar isso pelo desaparecimento físico da obra nas estantes e pelo desinteresse editorial (?). A obra de Arnim passou a ser mais usada como referência – mas isto não deveria afastar o leitor de língua inglesa, p. ex., ao longo dos anos 10, 20, 30.

Jean Brun, em Le Stoïcisme, PUF, 1958, Paris (O Estoicismo, ed. 70, 1986, Lisboa) menciona os “instrumentos fundamentais” para o estudo da Stoa: Pearson; von Arnim; Herman Diels (Doxographi Graeci, Berlim, 1879); e C. Vogel (Greek Philosophy, a collection of textes with notes and explanation, vol. III, Leiden, 1959)

O inglês Anthony Long (1986, pag. 254) apresenta a edição dos fragmentos de von Arnim na bibliografia estóica, considerando-a a “coletânea padrão da evidência para o antigo estoicismo (de Zenão a Antipatros)”, sem no entanto fazer a mínima menção a Pearson e à sua coletânea. Long sugere que a obra de Arnim "está atualmente carecendo de revisão. Parte do material que Arnim incluiu é de validade duvidosa para o estabelecimento das concepções de Crísipos, e alguns autores, especialmente Cícero e Sêneca, estão mal representados".

A Bibliothèque de la Pléiade lançou em 1962 o volume Les Stoïciens, uma coletânea organizada e traduzida por Émile Bréhier, e que foi editada e terminada por P.-Maxime Schuhl, Aubenque e Goldsmith. A coletânea inclui 1.500 pags. de textos estóicos, onde eles existem como originais completos (o Hino de Cleanthes, Sêneca, Epictetus, Marco Aurélio), ou como comentários (Cícero, Diog. L.).

[4] “It almost seems as if the scrupulousness with which he has been at pains to gather in everything which might have been connected to Chrysippus has reacted unfavourably on his attitude towards the earlier scholars.” The Classical Review, vol. 19, no 9 (December 1905), Oxford Univ. Press.

[5] O sub-título nos vols. II e III já o denota: Chrysippi Placita– cum generali stoicorum doctrina composita

[6] Os dois estudos de Émile Bréhier sobre a teoria dos incorporais e Crísipos são originalmente de 1908 [1928] e 1910 [1951]. Em La Théorie des Incorporels, p.3, aponta Crísipos como “le représentant le plus consideráble de l’ancien stoïcisme”. E Long & Sedley: “’early stoicism’ means for us, in effect, the philosophy of Chrysippus” (p. 3).

 

A Coletânea de Pearson - 2

 

O termo “os Estóicos” é, de início, bastante frequente nos comentadores antigos como Cícero e Laércios, que escrevem 250 ou 550 anos depois da fundação da Stoa (circa 305-300 aC), quando desejam designar a unidade histórica de doutrinas que se iniciam com o Zenão Fenício (acme 295 aC) e estão presentes em Cleanthes, Crísipos, Diogenes da Babilônia, Antipatros, Panaetios e Possidônios. Contudo, na secção dedicada a Crísipos (280-206 aC), Diogenes Laércios afirma:

Enquanto Cleanthes ainda vivia, Crísipos abandonou sua escola e desempenhou um papel destacado como filósofo... em numerosos pontos discordava de Zênon e também de Cleanthes... [Kury, VII. 179]

Sem Crísipos não existiria a escola estóica. [Kury, VII. 183]

Como diz Sótion... encontrando-se com Arcesilaos e Lacides [tornou-se discípulo] de ambos em filosofia [na Academia Cética] [Kury, VII. 184]. [7]

Estas e outras passagens no capítulo sobre Crísipos em D. Laércios indicam que o atleta de Solis, na juventude, sendo bom “dialético”, teria dado acabamento e feito a defesa das teses estóicas, sempre sob severa crítica dos ceticistas. Esta crítica fôra iniciada por Arcesilaos, discípulo dos acadêmicos Polêmon e Crates, e que se tornou escolarca da Academia com a morte deste último. [8]

É contra as teses zenonianas que a academia socrática de Arcesilaos se impõe. Ora, numa época talvez próxima a 245 (quando teria cerca de 35 anos, e Cleanthes 86), Crísipos teria se cansado de seus mestres “dogmáticos”, e se voltado para Arcesilaos e seu novo círculo ceticista. Apesar disso, Crísipos se torna escolarca estóico em 232, com o desaparecimento de Cleanthes. A continuação do [179]:

em numerosos pontos discordava de Zênon, e também de Cleantes, a quem costumava dizer que lhe competia somente expor as doutrinas, pois descobria as demonstrações sozinho. [Kury, VII. 179]

supõe um talentoso espírito sofista que, assim como bem soube empregar suas capacidades especulativas para dar continuidade aos princípios [dogmas] estóicos, poderia fazê-lo com quaisquer outros. Nesse caso o revisionismo de Crísipos na Stoa se seguiria, como tendência dos modos e costumes, de modo equivalente ao revisionismo de Arcesilaos aos dogmas da Academia. Isto é, menos como razão filosófica. [9]

Lemos no estudo introdutório de Pearson:

O resultado de nossa investigação foi o de mostrar conclusivamente que todas estas doutrinas que são mais caracteristicas da verdadeira essência do Estoicismo foram contribuições de Zenão e Cleanthes. A Zenão pertence o estabelecimento do critério lógico, a adaptação da física heraclítica, e a introdução de todos os principais delineamentos éticos. Cleanthes revolucionou o estudo da Física pela teoria da tensão e pelo desenvolvimento do panteísmo, e por aplicar suas visões materialistas à Lógica e à Ética expôs sob intensa luz a interdependência dos três ramos. A tarefa de Crísipos foi a de preservar, não a de dar origem... [p. 48]

E ainda:

No caso de Crísipos... não existe dúvida de que quase todo o conjunto de sua lógica foi um desenvolvimento, e não como exemplo muito feliz, da doutrina aristotélica do silogismo. Zenão, contudo, embora os títulos de vários de seus tratados lógicos tenham chegado até nós, não era considerado como havendo prestado grande atenção a este ramo da filosofia. A principal contribuição feita por Zenão à teoria do conhecimento foi o estabelecimento da phantasîa kataleptikê [impressão compreensiva] como critério. [p. 24]


A tese de que o conteúdo de sentenças ou predicações teria valor incorporal não está presente nas passagens recolhidas de Zenão e Cleanthes, a não ser por uma menção em Stobeos [I. 12. 3], de que as noções seriam “quase-coisas” (cf. nota [10]). Pearson indica que “nós aprendemos que [Cleanthes] introduziu o termo lektôn no sentido de kategôrema” [atributo, predicado, propriedade]. No comentário do frag. 07, devido a Cleanthes em sua coleção, Pearson afirma que os lektá seriam

abstrações contidas nos pensamentos, enquanto expressos no discurso, em oposição aos pensamentos de um lado, e às coisas pensadas por outro... Sendo incorpóreos não podem [os lektá] ter existência real, e no entanto os Estóicos parecem ter hesitado em negar sua existência de todo... na terminologia usual da escola kategôrema é uma sub-divisão de lektôn... nós podemos inferir que Cleanthes foi o primeiro a definir kategôrema em seu sentido mais restrito com a introdução do novo termo [mais abrangente] lektôn. [10]

Nesse caso podemos compreender os lektá como predicações significativas que se enquadram em conteúdos abstratos prévios... Pode-se supor que “incorpóreo” tenha surgido como sinônimo para “abstrato”, mas é difícil entender como a partir daí surge a definição das outras predicações que seriam “corpóreas”.

 

No comentário do frag. Z. 24 devido a Zenão

Zenão afirma que uma causa é ‘aquilo porque’, enquanto que aquilo de que ela é uma causa é um [sumbebekôs]; e que a causa é um corpo, enquanto aquilo de que ela é uma causa é um predicado. Ele diz que é impossível que a causa esteja presente, e que assim, aquilo de que ela é causa, não seja decorrente. Esta tese tem a seguinte força. Uma causa é aquilo porque algo ocorre, como, por exemplo, é por causa da prudência que ser prudente ocorre, por causa da alma que ser vivo ocorre, por causa da sensatez que ser sensato ocorre. Pois é impossível, ao se ter sensatez, não ser sensato, ou, ao se ter alma, não ser vivo, ao se ter prudência, não ser prudente. [Stobeos, I. 13. 1] [Arnim, I. 89] [L&S 55. A] [11]

Pearson, comentando o termo kategôrema, conclui que aquilo que surge (enquanto predicado) devido à causa:

seria por tanto incorpóreo, e Crísipos e Possidônios concomitantemente falam dele como não-existente. Provavelmente esta inferência não se apresentou à mente de Zenão, uma vez que a questão da [realidade] dos lektá somente surgiu posteriormente. [pag. 77]

 

Notas

[7] O tradutor brasileiro entende que Crísipos teria se tornado “discípulo” dos Ceticistas no [184], certamente por influência do [179], mas os outros tradutores entendem que ele “fez estudos filosóficos” com aqueles.

Hicks traduz o [184]: “At last, however... he joined Arcesilaus and Lacydes and studied philosophy under them in the Academy. And this explains his arguing at one time against, and at another in support of, ordinary experience, and his use of the method of the Academy when treating of magnitudes and numbers.”

E Yonge [London, 1853] traduz: “But at last, when Arcesilaus and Lacydes... came to the Academy, he joined them in the study of philosophy”.

Plutarco menciona no início de seu Concepções Comuns contra os Estóicos que Crísipos escrevera “contra Arcesilaos”. [cf. D.L., VII. 198]

[8] Os vários intérpretes desde o séc. XIX admitem 336, 335, 334 e 332 para o ano de nascimento de Zenão. Arcesilaos, nascido próximo a 318, era ainda um rapaz quando a Stoa foi fundada. Ao se tornar escolarca, adota o pirronismo na ética, e o ceticismo na lógica (epistemologia), mudando a face da academia platônica e dirigindo sua crítica às teses de Zenão. Nesse período, as novas gerações de filósofos traziam biografias extravagantes, luxuosas, ou demasiado ascéticas... Ariston de Quíos acusava a Arcesilaos de “devasso e corruptor da juventude”. O pirrônico Tímon se dedica a gracejos e anedotas a respeito de seus rivais filosóficos, que são minuciosamente recolhidos e displicentemente espalhados, em meio às sentenças de utilidade filosófica, em Diogenes Laércios.

O jovem fenício Zenão deve ter se instalado em Atenas próximo a 315, com cerca de 20 anos. Sendo filho de um mercador próspero, se torna estudante de filosofia por dez ou doze anos. Segundo a lenda, um naufrágio com seu carregamento de púrpura em frente ao Pireu, teria apressado sua vocação filosófica. De início, acompanha o cínico Crates. Antisthenes, um cidadão ateniense bastante culto e educado, nascido em 446, autor de muitas obras, discípulo de Sócrates, havia fundado a tradição dos “cínicos” ou “caninos”. O termo tinha a dupla significação de a escola ter sido fundada num promontório com nome de cão, e de alusão à doutrina de obstinação moral e severidade de Antisthenes. O termo cínico indicava a atitude ascética, inflexível, tal como o termo estóico veio a indicar depois. Antisthenes era também iniciado nos Mistérios Órficos.

De Xenocrates, Zenão deve ter ouvido muito pouco, se é que foi seu discípulo. Xenocrates teria nascido em 396, se tornando escolarca da academia em 339, e falecendo em 314, com 82 anos [Kury, nota 306]. Polêmon, nascido próximo a 345, terceiro escolarca na sucessão da Academia, deve ter sido seu mestre por mais tempo. (E só muito depois, de Arcesilaos). Zenão segue depois a lições do megárico Stílpon. Suas próprias lições na Stoa devem ter-se iniciado um pouco antes do ano 300 (Um pouco após, segundo Pearson).

[9] Cleanthes teria vivido 99 anos, de 331 a 232. Arcesilaos foi escolarca de 273 até falecer em 242, quando Lacides assume o posto. É provável que, havendo Cleanthes se tornado ancião, Crísipos tenha reunido um grupo de alunos em torno de si, diferentes daqueles que teriam continuado com o soturno mestre do logos divino... Ao se tornar escolarca, Crísipos estaria refundando a Stoa.

Isto é sugerido ainda por Diog. Laércios em [VII. 34]:

[Isidoros de Pêrgamon] afima que as passagens contrárias à doutrina estóica foram expurgadas das obras [de Crísipos] por iniciativa do estóico Atenôdoros, na época em que lhe foi confiada a biblioteca de Pêrgamon, mas foram reinseridas posteriormente, quando se descobriu o procedimento de Atenôdoros, contra quem foi instaurado um processo. É isso que se sabe a respeito das passagens de seus escritos consideradas espúrias. [Kury, VII. 34]

Ou seja, duas correntes persistiram na Stoa, uma de seguidores de Crísipos, e outra de seguidores dos fundadores.

Dois autores gregos do período romano com extensa obra preservada, Plutarco ao final do primeiro século, Galenos ao final do segundo, foram críticos sistemáticos de Crísipos. Galenos escreveu um livro Sobre as Qualidades Incorporais (preservado).

No pref. e introd. de seu ensaio de 1910 (356 pags.), Bréhier subscreve a imagem de Crísipos como “segundo fundador do Estoicismo... ao defendê-lo contra dissidentes como Ariston, e contra os adversários”: Portanto, não como dissidente, ele mesmo, e após contemplar as críticas dos adversários.

Para Chrysippe et le Ancien Stoïcisme:
archive.org/stream/chrysipp00br#page/n7/mode/2up

[10] Pearson, pags. 40, 241 (citando como ref. Stein, Erkenntnistheorie der Stoa). Cleanthes escreveu um livro com o título Peri Kategoremâton [D.L. VII. 175].

Long&Sedley [55. C] traduzem Pearson [C. 07]:

for Cleanthes and Archedemus call predicates “sayables”
[Clement, Miscellanies, VIII. 9. 26] [Arnim, I. 488]

A tradução “sayable” para lektôn não parece adequada uma vez que é a expressividade ou significatividade das sentenças que deve estar sendo realçada, não sua discursividade. Sendo portanto preferível “exprimível”, seguindo as traduções francesas.

Em Adversus Mathematicos VIII. 80, p. ex., o texto de Sextos não é consistente: Bett igualmente utiliza a tradução “sayable”

every sayable has to be said (this is how it came by its name)

Porém numa frase a seguir já deveria estar claro:

For saying is, as the stoics themselves claim, bringing forth the utterance that is capable of signifying the conceived object... [Bett, II. 80] [Arnim, II. 167]

[11] Nossa tradução para [L&S 55. A]. Na pag. 76 Pearson justifica a interpretação de sumbebekôs para ”resultado” ou “consequência inseparável”, modificando o sentido aceito a partir de Aristóteles como “acidente”, “peculiaridade”. A intenção de Zenão era de substituir os quatro tipos de causas aristotélicas por uma única “eficiente”: ou seja, material ou somática. Assim, a predicação sobre “o que resulta da causa” é acerca de uma consequência necessária, e material: - contradizendo a possibilidade “incorporal”.

Long&Sedley traduzem sumbebekôs por attribute.

Stobeos [I. 12. 3] faz menção a que

de acordo com a doutrina de Zenão, as noções [ennoêmatâ]... são imagens da psiquê, as quais são quasi-coisas e quasi-qualificadas. [cf. D.L. VII. 61, adiante]

Essa distinção surge em função da crítica ao estatuto das idéias platônicas. Ainda na mesma passagem de Stobeos

Os filósosfos estóicos dizem que não existem as Idéias, e que as noções [ennoêmatâ] são aquilo de que participamos, e que aquilo de que somos portadores são os casos [gramaticais] que eles chamam de apelativos. [Pearson, Z. 23] [Arnim, I. 65] [L&S 30. A]

Nossa tradução adaptada para [L&S 30. A]: cf. adiante, L&S traduzem ennôema por “conceito”.

Esta citação direta de Zenão seria uma rara instância que pode indicar como se originou a série das predicações abstratas, quasi-substanciais, quasi-existentes, subsistentes, incorporais, etc. O macedônico Stobeos escreve como antologista, 750 anos depois de Zenão. Com mais de 50 fragmentos estóicos na coletânea de Long&Sedley, tem um texto mais claro e conciso que Sextos Emp. e D. Laércios.

 

A Coletânia de Pearson - 3

 

Uma outra hipótese seria a de que Cleanthes tenha tido por intenção distinguir as predicações significativas, aquelas que designam atributos ou qualidades de algum sujeito, daquelas outras de circunstância, de estado, ou modo dos casos nominativos, ou ainda daquelas sentenças sem sujeito, incompletas, etc. A definição do lektôn seria de toda sentença que é expressiva por ser predicação significativa de algum nominativo, por diferença das sentenças de significação passageira, incerta, indeterminada, incompleta. Por exemplo a afirmação “a chuva é fria quando cai” como significação permanente, e “chove lá fora”, como sentença trivial. [12]

Uma vez que as sentenças passageiras, triviais, anônimas, também têm sua significatividade, provavelmente do esforço em distinguir estas intensidades de significação, tenha surgido o par das predicações corpóreas/incorpóreas.

A tese da predicação incorporal não é mencionada por Diog. Laércios (no parag. VII. 51, apenas as “representações incorporais”, cf. adiante), e não está presente na seção a respeito de Crísipos. [13] E também não se encontra nos fragmentos disponíveis do gramático Diogenes da Babilônia e daqueles que a ele se seguem no vol. III de von Arnim.

A continuação do texto de Stobeos registrado por Pearson em Z. 24 [acima] está na coletânea dos fragmentos de Possidônios, editada e traduzida por I.G.Kidd. No parágrafo seguinte, Stobeos menciona Crísipos, em consonância com Zenão, em que as causas são corporais, porém para Crísipos a predicação que resulta da causa seria “não existente e nem um corpo” [interpolação de Wachsmuth]. No parágrafo seguinte a este, Possidônios é mencionado, em consonância com Crísipos, em que a predicação que resulta da causa é “acidental”, “nem existente, nem corpo”. [14]

E o romano Sêneca (séc. I dC), que está mais próximo das leituras de Possidônios, nas Epístolas a seu amigo Lucillius [117. 13], se esmera em caracterizar a sutil diferença entre designar alguém ou algo material, ou “falar acerca de”, como um “movimento do pensamento”.

A coleção dos fragmentos que definem o lektôn incorporal é praticamente um conteúdo histórico “dos Estóicos”, preservado em suas menções mais significativas pelo pirrônico Sextos Empiricos (final séc. II dC), ele por certo muito interessado nos malabarismos megáricos que fizeram a fama de Crísipos. Além de Sextos, seu contemporâneo, o pagão convertido bispo Clemente de Alexandria, e Stobeos (séc. V) deixaram alguns comentários a respeito. [15] [16] [17]

 

Notas

[12] cf. D.L. VII. 63, 64. Hicks traduz lektôn por verbal expression.

[13] A idéia do “incorporal” não figura na lista interrompida dos títulos de Crísipos, o que por sua vez nada permite concluir: com cerca de 160 títulos, deve ser apenas parte inicial da coleção de 705 livros de Crísipos mencionada por D. Laércios. No material apresentado pelo descuidado compilador Laércios (início séc. III) as novas contribuições crisipianas não parecem estar presentes, apenas aquelas que reforçam a tradição. Ele pode ter tido acesso aos manuais mais antigos da Stoa; ou mais recentes, sob a influência de Possidônios de Rhodes (135-51 aC). Segundo Long (p. 117), o manual de Arios Didimos (final séc. I aC) seria uma referência para a parte ética.

[14] I. G. Kidd, Posidonius, vol. III – Cambridge Univ. Press, 1999, frag. F. 95. [Stobeos, I. 13] [L&S 55. A] [Arnim, II. 336].

Daí a conclusão de Pearson: a questão da [realidade] dos lektá... “não se apresentou à mente de Zenão”.

[15] Em Arnim, os parágrafos II. 85, 132, 166, 167, 331, que mencionam o lektôn assomâton, e o 341 (assomatous kategorêmatos), são sempre citações dos “estóicos”, nunca especificados, e todas elas de Sextos Empíricos. O parág. II. 363 é o [Ad. Math. VIII. 263]: “for the incorporeal, according to [the stoics], is not of a nature to do anything or to be affected” [Bett, II. 263]. Os parágs. Ad. Math. VIII. 262 e 264 que tratam do lektôn não estão na coletânea.

O parág. D.L. VII. 43 com o termo lektôn, igualmente não figura na coletânea de Arnim. Para o [43] L&S traduzem: “derivatively subsistent sayables” [31. A].

O parág. II. 87 em Arnim é o [D.L. VII. 53]: “things also conceived by transition, such as sayables and place” [L&S 39. D]. L&S traduzem ainda o [VII. 63]: “a sayable is what subsists in acc. with a rational impression” [33. F]. Em todos esses, somente “os estóicos”.

O parág. D.L. VII. 57, que abre o cap. 33 [Sayables (lekta)] em Long&Sedley, está incluído em S.V.F. [vol. III] no frag. 20 de Diogenes da Babilônia. As várias soluções dos tradutores para a distinção entre lêksis / logos / lektôn (lektá) evidenciam uma distinção difícil destes termos que provém do texto de Laércios. Lêksis [fala, voz, dicção, discurso, expressão] é diferente da simples locução sonora [soné] por ser articulada; e o logos [relato, relatório, discriminação] difere da lêksis por ser expressão ou discurso significativo; mas é significativo na medida em que fala das coisas, isto é, daquelas que participam dos lektá: “que podem ser ditas”; “are matters of discourse”; “are actually sayables”.

Em todas as passagens de Arnim (cf. Index, vol. IV) que encontramos para assômatos (substantivo o incorpóreo; pl. assômata) (e modos declinados: o subs. reverte para a condição adjetiva, atributiva), somente o [II. 503] é citação direta de Crísipos [Stobeos: “assomâtos apeiron”]. Duas [vol. I] são relativas a Zenão e Cleanthes. Uma citação no vol. III é a sentença negativa de Basilides sobre os incorporais. Todas as outras são indistintamente devidas aos “estóicos”.

A silogística redundante e confusa de Simplicius: “as qualidades dos corpos” [somâton] “são corpóreas” [somatikás], “e dos incorpóreos” [assomâton] “incorporais” [assomâtous] [II. 388, 389] [L&S 28. L], sugere que uma flutuação do termo entre substantivo e adjetivo seria intencional, no esforço lógico em definir a categoria universal dos incorporais-incorpóreos...

[16] Assim como em Diog. Laércios, podemos encontrar em Cicero (séc. I aC), em Plutarcos (séc. I dC), no eminente médico Galenos (séc. II), e nos bizantinos Proclus (séc. V) e Simplicius (séc. VI), menções à noção de incorpóreo como parte da física, sobre as qualificações da alma, do tempo, do espaço, etc.

Alexandre de Afrodísias (aristotélico, sec. II dC) discute a impropriedade dos estóicos em dividir os universais em existentes (corpos) e subsistentes (incorporais). [L&S 27. B; 30. D] [Arnim, II. 329]. E Ammonius, platônico comentador de Aristóteles do séc. V/VI resume com clareza:

Here Aristotle tells us what it is that [noums and verbs] primarily and immediately signify: his answer is “thoughts”, but through these as intermediate, “things”; and it is not necessary to conceive of anything else additional to them, intermediate between the thought and the thing, which the stoics postulated and decided to name a [“lektôn”]. [L&S 33. N]

[17] O surgimento de diversas concepções sobre frases ou sentidos incorporais pode ser resultado de um desenvolvimento comum entre megáricos, da escola de Diodoros e Philo, discípulos do socrático Arcesilaos, e Crísipos. Depois de uma fase de controvérsias, todos poderiam ter assumido um patrimônio lógico comum.

Não seria justo se formar os juízos sobre a produção filosófica da Stoa a partir de críticos como Sex. Empiricos e Plutarcos, ou compiladores como Clem. de Alexandria e Diog. Laércios, que escrevem com pouco rigor, não como estudantes de filosofia. Contudo, Cicero, Sêneca, Galenos, Alex. Afrodísias, Stobeos, são exemplos de analistas e intérpretes que se esforçaram por manter um padrão de leituras filosóficas que seriam úteis para os estudantes e analistas futuros. Levando-se em conta ainda os séculos de afastamento que eles, autores romanos e bizantinos, tiveram dos originais.

Lektôn Incorporal









A tese do “incorporal” como princípio, estado ou predicação aparece:


1) Como vestígio platônico:

Zenão estabeleceu que a substância natural que fez a gestação de todas as coisas, mesmo dos sentidos físicos e da mente, era ela própria fogo. Ele também se distinguiu desses autores ao sustentar que uma substância incorpórea, tal como Xenocrates e os pensadores mais antigos haviam se pronunciado acerca da mente, seria incapaz de qualquer atividade, ao passo em que qualquer coisa capaz de agir, ou de sofrer ação de qualquer forma, não poderia ser incorpórea. Cicero, Academica I. 39 [1]


2) Como a forma dos “princípios”, em contraste com a forma corpórea dos “elementos”, porém de modo controverso em Diog. Laércios VII. 134:

De conformidade com os estóicos, há uma diferença entre princípios e elementos: os princípios não foram gerados e são incorruptíveis, enquanto os elementos se corrompem quando ocorre a conflagração do cosmos. Além disso os princípios [arkhás] são incorpóreos e informes, enquanto os elementos [stoikeïa] têm uma forma determinada. [Kury, VII. 134] [2]

3) Como qualidade, propriedade ou modo do Tempo, do Espaço, e do Vácuo. Aqui pode-se conjecturar que a qualificação “incorporal” poderia ser dada não como o que é contrário, ou negativo, dos corpos: mas o que tem um sentido complementar, que existe num movimento de contraponto, acabamento. Estes filosofemas contudo só fazem sentido a partir da tese: “tudo é corpo”. [3]


4) Como incorporalidade natural de impressões na mente provenientes da imaginação, e não de seres do mundo real. Na seção sobre a lógica estóica, recolhida no manual de Dioclês de Magnésia, Diog. Laércios registra:

[61] Um objeto de pensamento (ou noção) é uma imagem do pensamento [Enôema dê esti phântasma dianoîas], que embora não seja realmente substância ou atributo é de certo modo substância e de certo modo atributo – por exemplo, a imagem de um cavalo que pode se apresentar diante do espírito, embora não seja o cavalo. [Kury, VII] [4]

e

[51] Os estóicos dividem as phantasiön [impressões] entre aquelas que são sensóreas e aquelas que não o são. As impressões sensóreas são aquelas obtidas através de um ou mais orgãos sensóreos, não sensóreas são aquelas obtidas por meio do pensamento [têns dianoîas], tais como aquelas das coisas incorporais [tôn assomâton] e das outras coisas adquiridas pela razão [âllon tôn lôgou lambanomênon]. [D.L. VII. 51]. [5]

Assim temos duas possibilidades de distinção da phantasîa enquanto produto do pensamento no [51]: “coisas incorpóreas” e “outras coisas adquiridas pela razão”. [6]

A “incorporalidade” de uma predicação estaria, de início, em sua designação de uma entidade abstrata, ou imaginária. Trata-se aqui, claramente, de impressões incorporais ou imaginárias as quais dão origem a expressões (lektá). Portanto, de início da ordem do phantastikôn [imaginação], porém sendo tomadas agora como phantasiön. Não é o mesmo que segue a partir de (5), onde sentenças, frases ditas, pensamentos, criam imagens em nossa mente, as quais seriam em seguida designadas por incorpóreas.


5) Portanto daquela concepção, que deveria pertencer ao momento inicial da Stoa (de impressões espontâneas abstratas), uma nova tese parece se sugerir no sentido de que todos os lektá, predicações significativas, designações de atributos, modos, seriam incorporais devido a que seu substrato é uma representação na mente, não a disposição de elementos no mundo real designada. Temos agora impressões abstratas ou incorpóreas, as quais resultam de predicações. Em Sextus Empiricos:

[Os Estóicos] dizem que um lektôn é aquilo que subsiste de acordo com uma impressão [phantasîa] racional, uma impressão racional é aquela em que o conteúdo da impressão pode ser exibido na linguagem. [Ad. M. VIII. 70] [7]

A impressões abstratas, produzidas na mente pela linguagem, são agora mais propriamente subsistentes, porém não existentes: [8]

As leituras de S. Empiricos e D. Laércios revelam uma dificuldade em distinguir as duas acepções mencionadas em (4), (5), onde elas estão como que “grudadas”.

Seria estranho, a propósito, que a tradição estóica tivesse tomado como criterion, como cânone, ou “critério da verdade”, o princípio da “representação [impressão] compreensiva”: Se considerado apenas como o critério da percepção segura, este filosofema deveria indicar um fechamento da Física para a abertura da Lógica (ou mesmo vice-versa). [9] Na medida em que este critério é transposto diretamente para a Lógica, isto é,  para os pensamentos, concepções, teorias, visões de mundo, etc, fica-se logo com a carência do substrato, que antes estaria nos objetos da percepção. Como criterio puramente lógico (do pensamento, da linguagem) este impasse seria de fácil solução, uma vez que o “substrato” pertence à física da mente - comandada, assim como o corpo, pela alma ou sua parte ativa, o hegemonikôn.


6) Como incorporalidade do que é designado em certas predicações de circunstância, estado, que dependem de uma convicção inicial do observador. O observador meramente aponta um caso ideal de significação no qual o observado se encontra:

“O verdadeiro” é dito como sendo “simples e uniforme”, e isto é aplicado a qualquer proposição que distingue qual é o caso. Porém “verdade” é algo composto e uma coleção de muitas coisas. De modo diferente do “verdadeiro”, a verdade é peculiar ao homem sábio, é corpórea; ao passo que “o verdadeiro” é incorporal. [Long, p. 130] [10]

As predicações se tornam incorporais porque designam situações corriqueiras, personalizadas, as quais dependem de conteúdos gerais abstratos para se afirmar. A opinião é assentimento fraco, incorpóreo, porque designa algo incerto e passageiro. Portanto, subsiste apenas no pensamento e na linguagem. [11]

Nesse caso, as duas espécies de predicações coexistem. A predicação corpórea é “conhecimento”, “causa”, “natureza”, “logos”; enquanto a incorpórea é “crença”, “opinião”, “assentimento fraco”.


7) Enquanto no platonismo o modo incorporal está no origem de cada predicação, como idéia abstrata – agora, em nova (crisipiana?) elaboração, o sentido incorporal está na consequência do discurso:

“Somente em lugar de empregar o incorporal como a causa dos seres, eles o empregam como os efeitos” [Bréhier, p. 10]


8) Como resultado da “mistura dos corpos”: a designação das causas que agem entre os corpos seria de outra natureza que a designação dos efeitos que eles mantêm entre si. Esta designação diria respeito a “efeitos de superfície” que os corpos manteriam entre si como misturados, sendo deste modo uma predicação incorporal:

“(Os seres reais) não são causas uns dos outros, mas causas, uns para os outros, de certas coisas.” Essas modificações são realidades? substâncias, ou qualidades? De modo algum: um corpo não pode dar a outro propriedades novas... Eles admitem uma mistura [mîxis, ou krásis] dos corpos que se penetram em suas partes mais íntimas. [Bréhier, p. 11] [Stromateis, Clem. de Alexandria, VIII. 9] [S.V.F. II. 349]
Dois planos de ser: de um lado o ser profundo e real, a força; de outro o plano dos fatos, que se projetam na superfície do ser e que constituem uma multiplicidade sem lugar e sem fim de seres incorporais. [Bréhier, p. 13]

Todos os corpos são causas uns para os outros... de certas coisas de uma natureza completamente diferente. Esses efeitos não são corpos... não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos. [Deleuze, p. 5; Dos Efeitos de Superfície] [12]


9) Como consequência do estado transitivo: a disposição, a mistura, ou o estado dos corpos no mundo requer a predicação incorporal porque estas condições envolvem os corpos, assim como o tempo e o espaço, mas não pertencem a eles: apenas se dão como a possibilidade, a circunstância ou o acabamento de sua disposição. Este sentido incorporal se designa por verbos que dão a condição ou estado dos corpos, mas não sua natureza ou propriedades. A condição transitiva é um atributo, mas este atributo é incorporal. [13]

Esta idéia, em continuidade com o conteúdo em (8), sugere uma formulação original em Crísipos. Bréhier indica sua origem megárica (p. 20).

Em Sêneca encontramos:

Existem naturezas materiais, tais como este homem, este cavalo, e elas são acompanhadas por movimentos do pensamento os quais fazem afirmações sobre elas. Estes movimentos contém algo peculiar a eles mesmos que é separado dos objetos materiais. Por exemplo, eu vejo Cato caminhando; o sentido da visão revela isto para mim e a mente nisto acredita. O que eu vejo é um objeto material e é para um objeto material que eu dirijo minha visão e minha mente. Então eu digo “Cato está caminhando”. Não é um objeto material que eu agora designo, mas uma certa afirmação sobre um objeto material... E assim, se nós dizemos “sabedoria”, nós tomamos isso como referência a algo material; porém se dissermos “ele é sábio”, nós fazemos uma afirmativa acerca de um objeto material. Há uma grande diferença entre você se referir ao sujeito diretamente, ou falar acerca dele. (Epis. Luc., 117, 13) [14]


10) A condição incorpórea enfim estaria no estado dos corpos, mas só poderia ser recolhida ou reconhecida na linguagem:

Consideremos o estatuto completo do sentido ou do expresso. De uma lado, não existe fora da proposição que o exprime. O expresso não existe fora de sua expressão... O acontecimento pertence essencialmente à linguagem. [Deleuze, p. 22]

Fenomenologia para se constituir novamente um mundo a partir de nossa percepção, ou comprensão sutil dos modos de realidade que exige de nossa linguagem um salto de imaginação – a tese da predicação incorporal parece um híbrido, um nominalismo em permanente reconstrução bizantina, que não permite reinvindicar a unidade do conceito por parte de “os estóicos”, “os dogmáticos”, e assim por diante.

Não seria difícil se obervar, numa inferência sobre a História da Escola dos Estóicos, uma série de utilizações e apropriações sucessivas da idéia do “incorpóreo”, e da “predicação incorporal”. De início como conceito platônico, estas hipóteses evoluem para designar o espaço e o tempo, atributos e generalidades produzidas pela linguagem, e casos gramaticais próprios (atributos “acerca de”; efeitos transitórios; efeitos-dos-corpos-entre-si), concebidos por algum hábil erístico ou dialético – tal como o supomos Crísipos. Como aspectos da Lógica, estas hipóteses devem ter merecido algum desenvolvimento em Diógenes da Babilônia, Apolodôros, Arquedêmos, Possidônios, etc. [15]

Podemos aceitar a leitura em Long de “inovações feitas por Crísipos que foram enxertadas nas teorias estóicas anteriores”:

A. C. Lloyd sugere que “existe um conflito latente e não reconhecido entre a teoria estóica do significado e a teoria estóica da etimologia.” [Lloyd, A.C., Grammar and Metaphysics in the Stoa. In: Long, A.A., Problems in Stoicism, ch. 4, London, 1971] O conflito ao qual ele se refere é a aparente disparidade entre o significado como “incorporal”, e a teoria que os elementos da linguagem são naturalmente similares às coisas no mundo. Eu também acho que existe o conflito e por certo alguma confusão, mas isto talvez possa ser explicado por dois aspectos: primeiro, inovações feitas por Crísipos que foram enxertadas nas teorias estóicas anteriores; segundo, por uma análise metafísica dos objetos e suas propriedades à qual a linguagem é requisitada a se conformar. [Long, p. 135]

[Galenos] procurou mostrar que Cleantes e mesmo Zenão não oferecem suporte para a doutrina de Crísipos. [Long, p. 219] [16]

Conclui-se por uma coleção de teses sob o conceito de “incorporal”, teses lógicas, gramaticais; da percepção e dos juízos; teses de uma física de “corpos” os quais se revestem de efeitos incorporais... teses que não chegam a formar uma Teoria dos Incorporais, conforme Bréhier – não uma teoria filosófica unificada, que possa ser considerada um cânone na tradição dos Estóicos. Como possível contribuição de Crísipos, um esboço de teoria – original, por ver os sentidos dos verbos enquanto designação de condição ou estado como sendo do mesmo valor que uma disposição dos corpos dentro de espaços e tempos incorporais – de sorte que esta disposição mesma se tornaria “incorporal”...

Ainda assim, não uma tese coerente, que seja dada como equivalente ou consequente ao corpo doutrinário e histórico da Stoa.

* * *

Ciro Moroni Barroso, Rio de Janeiro 2013

 

Notas

[1] Nossa tradução para a trad. inglesa de H. Rackham.

[2] Este parágrafo, como tantos outros, de sentido isolado em Laércios, indica que ele deve estar compondo seus parágrafos a partir de leituras descontínuas de manuais de fontes e épocas diferentes.

O parágrafo VII. 134 está em L&S, 44. B [Princípios]. Os autores traduzem “os princípios são também corpos”, porém observam que no texto paralelo do Suda está “os princípios são incorpóreos” – o que é consistente com serem igualmente “sem forma”.

Assim como o [134], novamente o parágrafo VII. 140 mostra ambiguidades e erros de transcrição insuperáveis, acumulados nos séculos:

Depois de mencionar [VII. 140] o vazio infinito fora do cosmos como incorpóreo; o incorpóreo como sendo capaz de conter corpos; o cosmos como unidade compacta; a inexistência do vazio dentro do cosmos; a afinidade e sintonia reinantes, e alguns estudos estóicos sobre o vazio, a última sentença aparece descontínua, sugerindo erro na transcrição do original:

“São todos estes todavia igualmente incorporais”,
ou
“igualmente corporais”
Eïnai dé kaí taῦnta [a]ssômata homoîos

original com as duas opções: clique em [Diogenes Laertius, greek]:
perseus.tufts.edu/hopper/collection?collection=Perseus:collection:Greco-Roman

O tradutor brasileiro entende que a última frase se refere somente a “afinidade e sintonia” [sûmpnoian kaí suntonîan] que ele conclui por serem “incorpóreas como o vazio”. O tradutor Hicks também supõe a última frase se referindo somente a “afinidade e sintonia” [sympathy and tension], porém entende que elas deveriam ser “corporais”. Isto certamente está de acordo com seu poder de bind together things in heaven and earth. Em sua nota [62] Hicks observa:

O Professor Pearson sugere: “são igualmente incorpóreos ainda estes:” - como introdução para o parágrafo seguinte [141].

Nesse caso a última frase controversa é destacada do [140] para formar o início do [141], no qual o tempo será apresentado como incorpóreo.

Entretanto, a leitura mais provável é a de que, nos cinco estudos mencionados sobre “o Vazio” (dois de Crísipos, um de Apolophanes, um de Apolodôros e um de Posidônios), todas as versões deste conceito sejam “igualmente incorpóreas”.

[3] Nesse caso, “incorpóreo” poderia se considerar aquilo que é destituído de corpo; ao passo que “incorporal” designaria aquilo que existe num movimento de acabamento ou cobertura dos corpos.

[4] A mesma tradução em Hicks [61] para enôema: “notion or object of thought”. Entretanto, L&S [30. C] traduzem enôema como “concept” (levando a leitura para a compreensão conforme o item 5, a seguir).

E Long&Sedley [39. A] traduzem phântasma dianoîas por “figment of the mind” o que parece mais adequado que Hicks: “presentation to the intellect” – quando phântasma [figment] e phantastikôn [imagination] devem ser distintos de phantasia [presentation, em Hicks]. Por exemplo:

Entende-se por phantasia aquilo que se forma do existente de conformidade com o próprio existente, estampado, marcado e impresso na alma, e que jamais poderia    proceder do não existente. [Kury, VII. 50]

[5] Nossa tradução para [L&S 39. A (4)]. Bréhier, que traduz phantasiõn como “représentations”, discutindo o [VII. 51] entende que os “exprimíveis” [lektá] fazem parte dos “incorporais” e não das “outras coisas percebidas pela razão” (p. 18).

[6] Uma predicação, ao mencionar “coisas incorpóreas”, ou “impressões não produzidas pelos sentidos”, não se torna porisso, ela mesma, “incorpórea”; ao passo que, simultaneamente, um pensamento ou predicação pode produzir impressões abstratas, ou incorpóreas, na mente. (cf. D.L. VII. 43)

Rackham e Hicks optam por “presentation” para phantasia, o primeiro para traduzir o latim visum de Cicero. Esta tradução inglesa deve ter contribuído para a escolha de “apresentação” pelo tradutor brasileiro, para traduzir phantasia na obra de Diógenes Laércio. Bett opta por “appearances”.

[7] Nossa tradução para [L&S 33. C].

L&S traduzem igualmente D.L. VII. 63 [33. F]:

a sayable is what subsists in accordance with a rational impression

[8] Bett, nas notas 30 e 83 do livro II, ao comentar a sentença do estóico obscuro Basilides, “não existe nada incorpóreo” [II. 258], afirma que esta seria a “visão padrão” ou “estrita” dos estóicos, e que os incorporais apenas subsistem [huphistanai].

Long&Sedley, todavia, consideram que: “Given the Stoics insistence that only bodies exist, the incorporeal status of sayables and predicates has proved a difficult notion to accommodate. Why are they grouped together with place, void and time whose incorporeality seems unproblematic?” [pag. 199]

[9] O parágrafo VII. 54 em Diog. Laércios afirma que somente Crísipos, Antipatros e Apolodôros sustentam este princípio “standard” [Hicks]. Os “antigos estóicos” afirmam o cânone do orthôs lôgos (razão correta: o logos heraclítico sendo tomado como realidade objetiva, não como fundação subjetiva). Bôethos admitia vários critérios, e Crísipos teria se contradito em relação a seu critério inicial, segundo D.L..

As questões dos incorporais como subsistentes, e do critério da verdade para objetos do pensamento, que estão no emaranhado de Sex. Empíricos, devem ser reminiscentes de torneios dialéticos entre Crísipos, e seus pares socráticos, erísticos e megáricos.

[10] Em Sextos, Ad. Math. VII. 38:

As for the truth... the Stoics think that it differs from what is true in three ways, in being, in composition, and in power. In being, in so far as the truth is a body, while what is true is incorporeal. And reasonably so, they say; for the latter is a proposition, and the proposition is a sayable, and the sayable is an incorporeal. The truth, by contrast, is a body in so far as it is thought to be knowledge that is capable of asserting everything that is true. (Bett, I. 38)

[11] Zenão e Cleanthes, por sua vez, certamente estariam de acordo em que a linguagem é um corpo: um corpo-linguagem, ou estrutura antropológica.

[12] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, Ed. Perspectiva, 1974 (Logique Du Sens, 1969)

[13] Long & Sedley traduzem [D.L. VII. 53]:

Some things are also conceived by transition, such as sayables and place. [39. D (7)]

As traduções de Hicks, “there are notions which imply a sort of transition to the realm of the imperceptible”; e de Kury, “Algumas noções se adquirem por meio de uma espécie de passagem do perceptível para o imperceptível”, parecem terrivelmente em excesso para: noeîtai dé kaí katá metâbasin tina...

Devemos recorrer à diferença ser/estar em português, não diretamente dada em outras línguas.

[14] Nossa tradução para Long, p. 136. Em [L&S 33. B] com tradução diferente.

Nas Epistulae Morales a seu discípulo Lucillius, em verdade breves estudos concisos da tradição estóica, o parág. 13 citado [117], é precedido por:

2. We of the Stoic school believe that the Good is corporeal, because the Good is active, and whatever is active is corporeal. That which is good, is helpful. But, in order to be helpful, it must be active; so, if it is active, it is corporeal. They (the Stoics) declare that wisdom is a Good; it therefore follows that one must also call wisdom corporeal. 3. But they do not think that being wise can be rated on the same basis. For it is incorporeal and accessory to something else, in other words, wisdom; hence it is in no respect active or helpful.
11. The Peripatetics believe that there is no distinction between wisdom and being wise, since either of these implies the other also. Now do you suppose that any man can be wise except one who possesses wisdom? Or that anyone who is wise does not possess wisdom? 12. The old masters of dialectic, however, distinguish between these two conceptions; and from them the classification has come right down to the Stoics.
[transl. by Richard Mott Gummere, Loeb Class. Library, vol. 3, 1925]

Estes parags. da Epístola 117, sendo citada sempre a “escola estóica”, não figuram entre os frags. de Von Arnim. Aqui, Sêneca esclarece que o tema da predicação incorporal é uma introdução dos megáricos (mestres dialéticos). O título da [117] é Acerca da Ética Real  como Superior às Sutilezas Silogísticas.

Somente na Epístola 89, [Partes da Filosofia] é novamente a categoria dos incorporais uma vez mencionada: bodily vs. non-bodily [somatikê vs. assômatos, cf. nota 20 de Gummere].

[15] Galenos menciona: “...the over-refined linguistic quibbling [subterfúgios, sofismas] of some philosophers... I mean the quibbling way in which they generically divide the existent and the subsistent. [On Medical Method, 10. 155] [L&S 27. G]

E Bhéhier lembra que “Galien avait reproché à l’ecole de Chrysippe de s’être attachée au language plus qu’ aux faits.” [La Théorie des Incorporels, pag. 25]

[16] Galenos e Possidônios fizeram muitas restrições à teoria da alma e dos impulsos de Crísipos. (Long, p. 175) [Galenos, De Placitis Hippocratis et Platonis, IV e V]  [I. G. Kidd, Posidonius, vol. III – The Translation of the Fragments, Cambridge Univ. Press, 1999, frags. 31-35; 156-169] [L&S, 65. I]

Filosofia da Stoa - 2

 











Apolo, quando ainda muito jovem... Atica, circa 500 aC

 

Bibliografia Adicional: [1]

9) Rackham, De Natura Deorum, Marcus Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

10) Rackham, Academica, Marcos Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

11) Duhot, Jean-Joël, Epicteto e a Sabedoria Estóica, Ed. Loyola, 2006 (Bayard Éd., 1996)

12) McEvilley, Thomas, The Shape of Ancient Thought, Allworth Press, N.Y., 2002

 

O Universo é composto por uma força ativa, vital, dirigida; e por uma outra parte de substâncias indiferenciadas, passivas, que servem de matéria original com que a força ativa constrói e reconstrói o mesmo Universo, o qual ela dirige... [2]

Eles sustentam que há duas formas primordiais no universo, a forma ativa e a passiva. A forma passiva é uma substância sem qualidade, que é a matéria. A forma ativa é a razão que atua sobre a matéria, que é Deus. Pois este é eterno e é o demiurgo criador de todas as coisas no processo relativo à matéria. [D.L. VII. 134]

O termo universo é usado por eles em três sentidos: (1) O primeiro é o próprio Deus, que é idêntico à qualidade de toda a substância; este é indestrutível e não engendrado, sendo o artífice da ordem universal, o qual em períodos determinados de tempo absorve em si mesmo toda a substância, e novamente recriando-a a partir de si mesmo. (2) Em seguida, a ordem dos astros celestiais; e (3) em terceiro, o conjunto dessas duas partes. [D.L. VII. 137; 138]

 

O Filósofo está atento às teses anteriores que propõem o Noüs de Anaxágoras, que descrevem o Demiurgo em Platão, que tratam da Alma em Aristóteles, e que mencionam os deuses em várias tradições lendárias. Ele propõe uma síntese, concebe a força ativa como artífice, como fogo produtor heraclítico. E começa de novo a Filosofia, funda sua escola com uma única tese central, que vai se proliferando e se abrindo em várias direções:

[57] (...) Quanto à natureza, Zenão a define dizendo que é um fogo artesão, que procede metodicamente em seu trabalho de geração. Ele sustenta que a principal função de uma arte ou artesanato é a de criar e produzir, e que aquilo que no processo de nossas artes é feito pelas mãos, é feito com muito mais artifício pela natureza, por aquele fogo artificioso [ignem artificiosum] que é o mestre de todas as outras artes. [3]
Nessa tese, a natureza em toda parte é artificiosa, num certo sentido de ter um plano e um curso a seguir; [58] a própria natureza do mundo, que é capaz de conter e manter num abraço todas as coisas existentes, é ela mesma concebida por Zenão não apenas artificiosa, mas como de fato um artífice [artifex], tomando providências e planejando em seu trabalho tudo que possa ser útil e vantajoso. [4]
E assim como todas as outras substâncias são geradas, são mantidas e sustentadas cada qual por suas sementes, assim também a natureza do mundo possui aqueles movimentos de vontade, as inclinações e desejos, que são pelos gregos denominados hormae; e suas ações se seguem de modo adequado, do mesmo modo que nós nos movemos segundo nossas almas e nossos sentidos.
Sendo esta a natureza da alma do universo, esta pode ser designada como prudência ou providência (o que em grego se diz prônoia); e suas principais provisões, e aquilo com o qual ela mais se ocupa, são todas as necessidades para a permanência do mundo; para que nada esteja em falta; e acima de tudo para os mais exímios arranjos de beleza e ornamento. [De Natura Deorum, Livro II, xxii]

A tese da Alma e do Panteísmo em Aristóteles, por comparação, parece uma formulação incompleta e obscura, na medida em que este não resolve bem quer a distinção, quer a equivalência, entre o Noüs anaxagórico e a Psiquê jônica. (Isto porém, na mesma correlação em que Anaxágoras não o faz, segundo o comentário de Aristóteles.) Enquanto o Noüs é intelecto puro, puro produtor incorpóreo de formas platônicas, a Psiquê estaria em plena relação física com cada corpo ou substância. Novamente, é a divindade que não se distingue de um Noüs onipotente, onisciente, onipresente, que nada detém de suas relações com a matéria, de tal sorte que a tese, ou reconstituição, aristotélica não se resolve satisfatoriamente. Zenão de Citium dissolve o Noüs incorpóreo numa Psiquê universal ígnea e corpórea, que mobiliza outros corpos, e é executora da atividade diretora e pensante. Esta atividade da Psiquê é ação orgânica da divindade sobre todos os corpos e sobre o mundo. [5]

 

A dificuldade inicial para o corpo das leituras aristotélicas é sua concepção intransigente sobre o poder do conhecimento: desde sempre, a percepção já é conhecimento, o conhecimento já é fim último, o raciocínio ou a razão são conhecimento... a autonomia, a potência íntima do humano se atualizam pelo conhecimento. Desde de que a História da Filosofia se constituiu como disciplina crítica, cabe perguntar se o Racionalismo não seria dado como a perpétua reiteração deste dogma aristotélico. Ao passo que os empiristas se definem como as diversas variantes deste fanatismo fundador: representar não é “conhecer a verdade”; as ciências seriam o conhecimento possível: aquele que é necessário; ali onde interessa ao sujeito do conhecimento; sempre reformável.

As apresentações das teses aristotélicas obedecem a uma sequência que já se supõe consagrada: o conhecimento é o bem maior, virtude máxima / conhecer é saber o que uma coisa é / saber o que algo é, é ter o conceito próprio / essência, substância, causa, princípio, forma, potência... A filosofia se torna teste sistemático de validade para peças infinitas, a serem colhidas num reconhecimento de universalidades. Cada entidade, animada, sensível, inanimada, deve receber suas categorias, seus gêneros. Contudo os conceitos deslizam em feixes de sinônimos incessantes. O que seriam de início simples eîdos, figuras sensíveis, em formas iniciais de pensamento, a se insinuarem pacificamente na mente – agora são os termos de um esforço extenuante de integração, de validação exaustiva. As categorias devem ser credenciadas, é um tribunal da razão eficiente: o único recurso é mantê-las solidárias numa rede de silogismos.

A crítica renascentista em Francis Bacon é devastadora quando descobre a insensibilidade aristotélica para o poder da inferência e da síntese intuitiva. Não apenas o poder da intuição é afastado pelo Estagirita, mas a própria possibilidade da definição, da concepção do “sexto sentido”. [De Anima III, 1]

Para o estóico, o intelecto, a consciência, é “princípio”, somente enquanto isto resulta de uma função articulada permanente. O pensamento é efeito ou produto de uma ação orgânica da alma – sua porção mais excelente – e somente nesse sentido, um “princípio”.

Em Aristóteles o pensamento exige o conceito puro, perfeito, platônico, finito. O platônico-aristotélico pergunda pela Forma: é a essência, a quididade, o elemento que se reduz ao pensado, do qual cada ente seria portador. O estóico pergunta pela Forma: é o corpo, um orgão, um complexo organizado, que se descreve. Para o estóico, assim como para o empirista, as representações da Física são abstrações, somente na medida em que são graus de abstração...

A questão da alma e do corpo, o estóico a resolve sob a concepção inicial, mais simples, de um corpo mais capacitado (ígneo, mais energético) que envolve um outro corpo, subordinado. Porém, isto resulta de uma inferência sobre materiais pitagóricos, órficos, teosóficos, os quais podem servir de perfeito empirismo para filósofos naturais... As sínteses lógicas e intuitivas sobre estes materiais são o acabamento que permite ao filósofo estóico propor seu filosofema. Para Aristóteles, o processo é mais árduo:

(414a_14) Pois, dizendo-se a substância de três modos, como já mencionado, dos quais um é a forma, outro a matéria e, por fim, o composto de ambas – e, destes, a matéria é potência e a forma, por sua vez, atualidade –, e já que o composto de ambas é animado, não é o corpo a atualidade da alma, ao contrário, ela que é a atualidade de um certo corpo. E por isso supõem corretamente aqueles que têm a opinião de não existir alma sem corpo e tampouco ser a alma um certo corpo; pois ela não é corpo, mas algo do corpo, e por isso subsiste no corpo e num corpo de tal tipo... [De ANIMA, II, 2 - Apres., trad. e notas de M. Cecília Gomes dos Reis, Ed. 34 Letras, 2006]

De tal sorte que:

Bertrand Russell, em sua History of Western Philosophy, publicada em 1945 [vol. I], emite a opinião sobre a lógica aristotélica de que “sua influência hoje é tão contrária ao raciocínio claro que é difícil lembrar-se do grande progresso por ele realizado sobre todos os seus predecessores”. Russell atacou a noção de substância com críticas deste calibre: “quando encarada seriamente, é um conceito impossível de estar livre de dificuldades [...]; é simplesmente um modo conveniente de se reunir acontecimentos em feixes [...]; substância, numa palavra, é um erro metafísico, devido à transferência para a estrutura do mundo da estrutura de sentenças compostas de um sujeito e um predicado”. [idem, Introd., nota 23]

Trata-se aqui, segundo o filósofo-historiador inglês, não apenas da transferência de nossos poderes de significação à realidade do mundo, mas à sua organização, isto é, a sua “estrutura”… A crítica de Russell é essencialmente a crítica a toda a tradição idealista: os conceitos são requisitados como sínteses iniciais do pensamento (da imaginação), a serem aplicados para a compreensão do mundo e de seus elementos. A tradição empírica, por oposição, somente propõe um conceito depois da certeza de que este é uma sintese de observações – mas igualmente síntese de intuições e hipóteses. A capacidade da mente em buscar hipóteses ou raciocínios universais não diretamente dados na percepção também é, a seu modo, observada. [6]

Em Platão, o Logos é a pura abstração que precede o Real, e concede a possibilidade do conceito. No que se converte na tradição racionalista, desde Platão e Aristóteles, aquilo que dá origem, que opera sobre a Física, são essências, as quais são “causa de uma coisa existir”. Aquilo que apenas pode ser representado por uma idéia, em nossa mente. As essências se manifestam como propriedades diretas, instantâneas, sobre os corpos. No Estoicismo sempre corpos atuam sobre corpos. A percepção, o pensamento, são efeitos de luz e de pneuma, no interior da mente: orgão que é ativado pela alma, por sua vez, também orgão. Nesta natureza, cada movimento, cada transformação de um corpo é sempre causada por outros corpos. Num universo de início possuído por causas eficientes, nos termos aristotélicos, o Théos Universal é ainda possuído por interesses, que resultam nas causas formais, e nos finalismos. O Logos, nestes termos, é Lei, somente enquanto um resultado, ou efeito final cosmológico.

Sob o ponto de vista estóico, em Descartes, Spinoza, Kant, a noção de razão está na mesma condição inicial do racionalismo platônico: como abstração do princípio diretor. O Hegemonikôn como orgão diretor, refletor, comparador, ponderador (dos deuses ou humanos), produz o pensamento enquanto um funcionamento na mente individual. Nos autores racionalistas, a razão vem a ser o próprio pensamento, porém dado de forma substanciosa, ou como essência. Em Kant, a noção de razão evolui para capacidade, faculdade de juízo, mas permanece uma quididade.

O pensamento dado como substância divina; o espírito, ou a alma, dados como coisa-pensante; as Idéias entendidas como substrato da razão; a Razão, dada como propriedade, ou faculdade do Espírito... Nesta interminável sequência de silogismos e disjunções – de Platão a Descartes, de Aristóteles a Spinoza, de Aquino a Leibniz – não se vislumbra a noção de Razão enquanto processo – processos de juízo e de análise como funções psicológicas; a Razão como concertado empírico através dos séculos...

 

Notas


[1] As traduções de Diógenes Laércios [D.L.] aqui apresentadas são adaptações das traduções do grego de Kury, Hicks, Long&Sedley e Bréhier [Les Stoïciens, 1962], confrontadas com os originais, na medida em que os dicionários o permitem. O autor não reivindica conhecimento da língua grega. (Sendo assim, algumas transliterações podem sofrer de imperfeições.)

Da mesma forma, as citações de De Natura Deorum e Academica são vertidas para o português a partir das traduções do latim de Rackham, Bréhier, Long&Sedley e Francis Brooks (1894).

[2] A tradição do Vedanta, antiga Sabedoria dos Vedas na Índia, desenvolveu um modelo cosmogônico-teológico, no qual o Brahmãn, entidade cosmológica eterna, dá suporte à porção do Cosmos que está no devir. O Cosmos é composto por Vishnu, Brahmá, e Shiva. Vishnu corresponde a Khronos, deus temporal, primeira manifestação de Brahmãn. Brahmá nasce do umbigo de Vishnu, para criar o universo físico (um demiurgo, portanto), sendo pai e avô dos deuses e dos humanos. Em longos ciclos de bilhões de anos, Brahmá, sob a ação de seu duplo Shiva, passa por uma dissolução [ou ehkipyrosis], sendo reabsorvido em Vishnu. Vishnu adormece e se dissolve no Brahmãn. Num tempo incontável eles renascem...
Essa cosmogonia está nos tratados Puranas, escritos no séc. IV de nosso calendário, mas é difícil saber quando e como surgiram inicialmente. Não seria o caso de se enfatizar a difusão ou a precedência de um conteúdo (hindu vs. grego) para explicar sua origem [cf. a tese em McEvilley, vide intr. e cap. 1]... Ou enfatizar uma lógica interna das teologias, de modo que qualquer filósofo possa encontrá-las separadamente. Ou ainda o ofício dos Dâimones e Sîbilas, que poderiam ditar as Teosofias a seus adeptos em qualquer época ou cultura. – Trata-se de se considerar as três hipóteses simultaneamente.

[3] Pearson Z. 46; D.L. VII. 156

[4] Pearson Z. 48; D.L. VII. 86

[5] Em De Anima, Aristóteles tenta sintetizar a noção de alma divina e incorpórea, capaz de conferir a forma pensável de cada corpo ou substância, com a outra noção de alma física dos jônios. Ao invés de uma síntese, o filósofo macedônio embaralha indefinidamente as duas noções distintas. Entretanto esta síntese impossível parece ter sido consequência da formulação inicial de Anaxágoras: o Nôus, que é dado como forma pensante universal, como intelecto ou espírito pensante – simultaneamente é dado como força motriz dos corpos – porém jamais se mesclando com os corpos. [404b 1] [405a 13] [430a 15]

[6] Para o empirista (a partir de Bacon e Locke) os conceitos são sínteses de generalidades: não designam o que existe de modo direto visível, mas são dados como inferências. Contudo, as generalidades devem ser representadas sob um conceito único, porque estão unidas sob determinada forma, que dá a oportunidade do conceito; esta forma existe no campo mental, ela é representação... Por sua vez, esta forma é um novo corpo; não incorporal. A representação abstrata não é forma-essência, no sentido platônico, que se dá ao “entendimento”. É forma como corpo-articulado; esquema ou diagrama no corpo-linguagem.
E a representação, como imagem projetada na mente é, curiosamente, tal como em um cinema: a subjetividade projeta imagens, mas é também Quem assiste suas imagens...
O incessante torneio comparativo entre conceitos iniciais, que seriam absolutos, mas que em seguida perdem suas propriedades autênticas e seguras... serve no ofício aristotélico não para um encontro compreensivo com o mundo, mas para uma diversão tediosa de um Sujeito que já se quer “transcendental”.