segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Filosofia da Stoa - 2

 











Apolo, quando ainda muito jovem... Atica, circa 500 aC

 

Bibliografia Adicional: [1]

9) Rackham, De Natura Deorum, Marcus Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

10) Rackham, Academica, Marcos Tulio Cicero; H. Rackham trans., Loeb Classical, 1933

11) Duhot, Jean-Joël, Epicteto e a Sabedoria Estóica, Ed. Loyola, 2006 (Bayard Éd., 1996)

12) McEvilley, Thomas, The Shape of Ancient Thought, Allworth Press, N.Y., 2002

 

O Universo é composto por uma força ativa, vital, dirigida; e por uma outra parte de substâncias indiferenciadas, passivas, que servem de matéria original com que a força ativa constrói e reconstrói o mesmo Universo, o qual ela dirige... [2]

Eles sustentam que há duas formas primordiais no universo, a forma ativa e a passiva. A forma passiva é uma substância sem qualidade, que é a matéria. A forma ativa é a razão que atua sobre a matéria, que é Deus. Pois este é eterno e é o demiurgo criador de todas as coisas no processo relativo à matéria. [D.L. VII. 134]

O termo universo é usado por eles em três sentidos: (1) O primeiro é o próprio Deus, que é idêntico à qualidade de toda a substância; este é indestrutível e não engendrado, sendo o artífice da ordem universal, o qual em períodos determinados de tempo absorve em si mesmo toda a substância, e novamente recriando-a a partir de si mesmo. (2) Em seguida, a ordem dos astros celestiais; e (3) em terceiro, o conjunto dessas duas partes. [D.L. VII. 137; 138]

 

O Filósofo está atento às teses anteriores que propõem o Noüs de Anaxágoras, que descrevem o Demiurgo em Platão, que tratam da Alma em Aristóteles, e que mencionam os deuses em várias tradições lendárias. Ele propõe uma síntese, concebe a força ativa como artífice, como fogo produtor heraclítico. E começa de novo a Filosofia, funda sua escola com uma única tese central, que vai se proliferando e se abrindo em várias direções:

[57] (...) Quanto à natureza, Zenão a define dizendo que é um fogo artesão, que procede metodicamente em seu trabalho de geração. Ele sustenta que a principal função de uma arte ou artesanato é a de criar e produzir, e que aquilo que no processo de nossas artes é feito pelas mãos, é feito com muito mais artifício pela natureza, por aquele fogo artificioso [ignem artificiosum] que é o mestre de todas as outras artes. [3]
Nessa tese, a natureza em toda parte é artificiosa, num certo sentido de ter um plano e um curso a seguir; [58] a própria natureza do mundo, que é capaz de conter e manter num abraço todas as coisas existentes, é ela mesma concebida por Zenão não apenas artificiosa, mas como de fato um artífice [artifex], tomando providências e planejando em seu trabalho tudo que possa ser útil e vantajoso. [4]
E assim como todas as outras substâncias são geradas, são mantidas e sustentadas cada qual por suas sementes, assim também a natureza do mundo possui aqueles movimentos de vontade, as inclinações e desejos, que são pelos gregos denominados hormae; e suas ações se seguem de modo adequado, do mesmo modo que nós nos movemos segundo nossas almas e nossos sentidos.
Sendo esta a natureza da alma do universo, esta pode ser designada como prudência ou providência (o que em grego se diz prônoia); e suas principais provisões, e aquilo com o qual ela mais se ocupa, são todas as necessidades para a permanência do mundo; para que nada esteja em falta; e acima de tudo para os mais exímios arranjos de beleza e ornamento. [De Natura Deorum, Livro II, xxii]

A tese da Alma e do Panteísmo em Aristóteles, por comparação, parece uma formulação incompleta e obscura, na medida em que este não resolve bem quer a distinção, quer a equivalência, entre o Noüs anaxagórico e a Psiquê jônica. (Isto porém, na mesma correlação em que Anaxágoras não o faz, segundo o comentário de Aristóteles.) Enquanto o Noüs é intelecto puro, puro produtor incorpóreo de formas platônicas, a Psiquê estaria em plena relação física com cada corpo ou substância. Novamente, é a divindade que não se distingue de um Noüs onipotente, onisciente, onipresente, que nada detém de suas relações com a matéria, de tal sorte que a tese, ou reconstituição, aristotélica não se resolve satisfatoriamente. Zenão de Citium dissolve o Noüs incorpóreo numa Psiquê universal ígnea e corpórea, que mobiliza outros corpos, e é executora da atividade diretora e pensante. Esta atividade da Psiquê é ação orgânica da divindade sobre todos os corpos e sobre o mundo. [5]

 

A dificuldade inicial para o corpo das leituras aristotélicas é sua concepção intransigente sobre o poder do conhecimento: desde sempre, a percepção já é conhecimento, o conhecimento já é fim último, o raciocínio ou a razão são conhecimento... a autonomia, a potência íntima do humano se atualizam pelo conhecimento. Desde de que a História da Filosofia se constituiu como disciplina crítica, cabe perguntar se o Racionalismo não seria dado como a perpétua reiteração deste dogma aristotélico. Ao passo que os empiristas se definem como as diversas variantes deste fanatismo fundador: representar não é “conhecer a verdade”; as ciências seriam o conhecimento possível: aquele que é necessário; ali onde interessa ao sujeito do conhecimento; sempre reformável.

As apresentações das teses aristotélicas obedecem a uma sequência que já se supõe consagrada: o conhecimento é o bem maior, virtude máxima / conhecer é saber o que uma coisa é / saber o que algo é, é ter o conceito próprio / essência, substância, causa, princípio, forma, potência... A filosofia se torna teste sistemático de validade para peças infinitas, a serem colhidas num reconhecimento de universalidades. Cada entidade, animada, sensível, inanimada, deve receber suas categorias, seus gêneros. Contudo os conceitos deslizam em feixes de sinônimos incessantes. O que seriam de início simples eîdos, figuras sensíveis, em formas iniciais de pensamento, a se insinuarem pacificamente na mente – agora são os termos de um esforço extenuante de integração, de validação exaustiva. As categorias devem ser credenciadas, é um tribunal da razão eficiente: o único recurso é mantê-las solidárias numa rede de silogismos.

A crítica renascentista em Francis Bacon é devastadora quando descobre a insensibilidade aristotélica para o poder da inferência e da síntese intuitiva. Não apenas o poder da intuição é afastado pelo Estagirita, mas a própria possibilidade da definição, da concepção do “sexto sentido”. [De Anima III, 1]

Para o estóico, o intelecto, a consciência, é “princípio”, somente enquanto isto resulta de uma função articulada permanente. O pensamento é efeito ou produto de uma ação orgânica da alma – sua porção mais excelente – e somente nesse sentido, um “princípio”.

Em Aristóteles o pensamento exige o conceito puro, perfeito, platônico, finito. O platônico-aristotélico pergunda pela Forma: é a essência, a quididade, o elemento que se reduz ao pensado, do qual cada ente seria portador. O estóico pergunta pela Forma: é o corpo, um orgão, um complexo organizado, que se descreve. Para o estóico, assim como para o empirista, as representações da Física são abstrações, somente na medida em que são graus de abstração...

A questão da alma e do corpo, o estóico a resolve sob a concepção inicial, mais simples, de um corpo mais capacitado (ígneo, mais energético) que envolve um outro corpo, subordinado. Porém, isto resulta de uma inferência sobre materiais pitagóricos, órficos, teosóficos, os quais podem servir de perfeito empirismo para filósofos naturais... As sínteses lógicas e intuitivas sobre estes materiais são o acabamento que permite ao filósofo estóico propor seu filosofema. Para Aristóteles, o processo é mais árduo:

(414a_14) Pois, dizendo-se a substância de três modos, como já mencionado, dos quais um é a forma, outro a matéria e, por fim, o composto de ambas – e, destes, a matéria é potência e a forma, por sua vez, atualidade –, e já que o composto de ambas é animado, não é o corpo a atualidade da alma, ao contrário, ela que é a atualidade de um certo corpo. E por isso supõem corretamente aqueles que têm a opinião de não existir alma sem corpo e tampouco ser a alma um certo corpo; pois ela não é corpo, mas algo do corpo, e por isso subsiste no corpo e num corpo de tal tipo... [De ANIMA, II, 2 - Apres., trad. e notas de M. Cecília Gomes dos Reis, Ed. 34 Letras, 2006]

De tal sorte que:

Bertrand Russell, em sua History of Western Philosophy, publicada em 1945 [vol. I], emite a opinião sobre a lógica aristotélica de que “sua influência hoje é tão contrária ao raciocínio claro que é difícil lembrar-se do grande progresso por ele realizado sobre todos os seus predecessores”. Russell atacou a noção de substância com críticas deste calibre: “quando encarada seriamente, é um conceito impossível de estar livre de dificuldades [...]; é simplesmente um modo conveniente de se reunir acontecimentos em feixes [...]; substância, numa palavra, é um erro metafísico, devido à transferência para a estrutura do mundo da estrutura de sentenças compostas de um sujeito e um predicado”. [idem, Introd., nota 23]

Trata-se aqui, segundo o filósofo-historiador inglês, não apenas da transferência de nossos poderes de significação à realidade do mundo, mas à sua organização, isto é, a sua “estrutura”… A crítica de Russell é essencialmente a crítica a toda a tradição idealista: os conceitos são requisitados como sínteses iniciais do pensamento (da imaginação), a serem aplicados para a compreensão do mundo e de seus elementos. A tradição empírica, por oposição, somente propõe um conceito depois da certeza de que este é uma sintese de observações – mas igualmente síntese de intuições e hipóteses. A capacidade da mente em buscar hipóteses ou raciocínios universais não diretamente dados na percepção também é, a seu modo, observada. [6]

Em Platão, o Logos é a pura abstração que precede o Real, e concede a possibilidade do conceito. No que se converte na tradição racionalista, desde Platão e Aristóteles, aquilo que dá origem, que opera sobre a Física, são essências, as quais são “causa de uma coisa existir”. Aquilo que apenas pode ser representado por uma idéia, em nossa mente. As essências se manifestam como propriedades diretas, instantâneas, sobre os corpos. No Estoicismo sempre corpos atuam sobre corpos. A percepção, o pensamento, são efeitos de luz e de pneuma, no interior da mente: orgão que é ativado pela alma, por sua vez, também orgão. Nesta natureza, cada movimento, cada transformação de um corpo é sempre causada por outros corpos. Num universo de início possuído por causas eficientes, nos termos aristotélicos, o Théos Universal é ainda possuído por interesses, que resultam nas causas formais, e nos finalismos. O Logos, nestes termos, é Lei, somente enquanto um resultado, ou efeito final cosmológico.

Sob o ponto de vista estóico, em Descartes, Spinoza, Kant, a noção de razão está na mesma condição inicial do racionalismo platônico: como abstração do princípio diretor. O Hegemonikôn como orgão diretor, refletor, comparador, ponderador (dos deuses ou humanos), produz o pensamento enquanto um funcionamento na mente individual. Nos autores racionalistas, a razão vem a ser o próprio pensamento, porém dado de forma substanciosa, ou como essência. Em Kant, a noção de razão evolui para capacidade, faculdade de juízo, mas permanece uma quididade.

O pensamento dado como substância divina; o espírito, ou a alma, dados como coisa-pensante; as Idéias entendidas como substrato da razão; a Razão, dada como propriedade, ou faculdade do Espírito... Nesta interminável sequência de silogismos e disjunções – de Platão a Descartes, de Aristóteles a Spinoza, de Aquino a Leibniz – não se vislumbra a noção de Razão enquanto processo – processos de juízo e de análise como funções psicológicas; a Razão como concertado empírico através dos séculos...

 

Notas


[1] As traduções de Diógenes Laércios [D.L.] aqui apresentadas são adaptações das traduções do grego de Kury, Hicks, Long&Sedley e Bréhier [Les Stoïciens, 1962], confrontadas com os originais, na medida em que os dicionários o permitem. O autor não reivindica conhecimento da língua grega. (Sendo assim, algumas transliterações podem sofrer de imperfeições.)

Da mesma forma, as citações de De Natura Deorum e Academica são vertidas para o português a partir das traduções do latim de Rackham, Bréhier, Long&Sedley e Francis Brooks (1894).

[2] A tradição do Vedanta, antiga Sabedoria dos Vedas na Índia, desenvolveu um modelo cosmogônico-teológico, no qual o Brahmãn, entidade cosmológica eterna, dá suporte à porção do Cosmos que está no devir. O Cosmos é composto por Vishnu, Brahmá, e Shiva. Vishnu corresponde a Khronos, deus temporal, primeira manifestação de Brahmãn. Brahmá nasce do umbigo de Vishnu, para criar o universo físico (um demiurgo, portanto), sendo pai e avô dos deuses e dos humanos. Em longos ciclos de bilhões de anos, Brahmá, sob a ação de seu duplo Shiva, passa por uma dissolução [ou ehkipyrosis], sendo reabsorvido em Vishnu. Vishnu adormece e se dissolve no Brahmãn. Num tempo incontável eles renascem...
Essa cosmogonia está nos tratados Puranas, escritos no séc. IV de nosso calendário, mas é difícil saber quando e como surgiram inicialmente. Não seria o caso de se enfatizar a difusão ou a precedência de um conteúdo (hindu vs. grego) para explicar sua origem [cf. a tese em McEvilley, vide intr. e cap. 1]... Ou enfatizar uma lógica interna das teologias, de modo que qualquer filósofo possa encontrá-las separadamente. Ou ainda o ofício dos Dâimones e Sîbilas, que poderiam ditar as Teosofias a seus adeptos em qualquer época ou cultura. – Trata-se de se considerar as três hipóteses simultaneamente.

[3] Pearson Z. 46; D.L. VII. 156

[4] Pearson Z. 48; D.L. VII. 86

[5] Em De Anima, Aristóteles tenta sintetizar a noção de alma divina e incorpórea, capaz de conferir a forma pensável de cada corpo ou substância, com a outra noção de alma física dos jônios. Ao invés de uma síntese, o filósofo macedônio embaralha indefinidamente as duas noções distintas. Entretanto esta síntese impossível parece ter sido consequência da formulação inicial de Anaxágoras: o Nôus, que é dado como forma pensante universal, como intelecto ou espírito pensante – simultaneamente é dado como força motriz dos corpos – porém jamais se mesclando com os corpos. [404b 1] [405a 13] [430a 15]

[6] Para o empirista (a partir de Bacon e Locke) os conceitos são sínteses de generalidades: não designam o que existe de modo direto visível, mas são dados como inferências. Contudo, as generalidades devem ser representadas sob um conceito único, porque estão unidas sob determinada forma, que dá a oportunidade do conceito; esta forma existe no campo mental, ela é representação... Por sua vez, esta forma é um novo corpo; não incorporal. A representação abstrata não é forma-essência, no sentido platônico, que se dá ao “entendimento”. É forma como corpo-articulado; esquema ou diagrama no corpo-linguagem.
E a representação, como imagem projetada na mente é, curiosamente, tal como em um cinema: a subjetividade projeta imagens, mas é também Quem assiste suas imagens...
O incessante torneio comparativo entre conceitos iniciais, que seriam absolutos, mas que em seguida perdem suas propriedades autênticas e seguras... serve no ofício aristotélico não para um encontro compreensivo com o mundo, mas para uma diversão tediosa de um Sujeito que já se quer “transcendental”.

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