segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A Coletânea de Pearson - 2

 

O termo “os Estóicos” é, de início, bastante frequente nos comentadores antigos como Cícero e Laércios, que escrevem 250 ou 550 anos depois da fundação da Stoa (circa 305-300 aC), quando desejam designar a unidade histórica de doutrinas que se iniciam com o Zenão Fenício (acme 295 aC) e estão presentes em Cleanthes, Crísipos, Diogenes da Babilônia, Antipatros, Panaetios e Possidônios. Contudo, na secção dedicada a Crísipos (280-206 aC), Diogenes Laércios afirma:

Enquanto Cleanthes ainda vivia, Crísipos abandonou sua escola e desempenhou um papel destacado como filósofo... em numerosos pontos discordava de Zênon e também de Cleanthes... [Kury, VII. 179]

Sem Crísipos não existiria a escola estóica. [Kury, VII. 183]

Como diz Sótion... encontrando-se com Arcesilaos e Lacides [tornou-se discípulo] de ambos em filosofia [na Academia Cética] [Kury, VII. 184]. [7]

Estas e outras passagens no capítulo sobre Crísipos em D. Laércios indicam que o atleta de Solis, na juventude, sendo bom “dialético”, teria dado acabamento e feito a defesa das teses estóicas, sempre sob severa crítica dos ceticistas. Esta crítica fôra iniciada por Arcesilaos, discípulo dos acadêmicos Polêmon e Crates, e que se tornou escolarca da Academia com a morte deste último. [8]

É contra as teses zenonianas que a academia socrática de Arcesilaos se impõe. Ora, numa época talvez próxima a 245 (quando teria cerca de 35 anos, e Cleanthes 86), Crísipos teria se cansado de seus mestres “dogmáticos”, e se voltado para Arcesilaos e seu novo círculo ceticista. Apesar disso, Crísipos se torna escolarca estóico em 232, com o desaparecimento de Cleanthes. A continuação do [179]:

em numerosos pontos discordava de Zênon, e também de Cleantes, a quem costumava dizer que lhe competia somente expor as doutrinas, pois descobria as demonstrações sozinho. [Kury, VII. 179]

supõe um talentoso espírito sofista que, assim como bem soube empregar suas capacidades especulativas para dar continuidade aos princípios [dogmas] estóicos, poderia fazê-lo com quaisquer outros. Nesse caso o revisionismo de Crísipos na Stoa se seguiria, como tendência dos modos e costumes, de modo equivalente ao revisionismo de Arcesilaos aos dogmas da Academia. Isto é, menos como razão filosófica. [9]

Lemos no estudo introdutório de Pearson:

O resultado de nossa investigação foi o de mostrar conclusivamente que todas estas doutrinas que são mais caracteristicas da verdadeira essência do Estoicismo foram contribuições de Zenão e Cleanthes. A Zenão pertence o estabelecimento do critério lógico, a adaptação da física heraclítica, e a introdução de todos os principais delineamentos éticos. Cleanthes revolucionou o estudo da Física pela teoria da tensão e pelo desenvolvimento do panteísmo, e por aplicar suas visões materialistas à Lógica e à Ética expôs sob intensa luz a interdependência dos três ramos. A tarefa de Crísipos foi a de preservar, não a de dar origem... [p. 48]

E ainda:

No caso de Crísipos... não existe dúvida de que quase todo o conjunto de sua lógica foi um desenvolvimento, e não como exemplo muito feliz, da doutrina aristotélica do silogismo. Zenão, contudo, embora os títulos de vários de seus tratados lógicos tenham chegado até nós, não era considerado como havendo prestado grande atenção a este ramo da filosofia. A principal contribuição feita por Zenão à teoria do conhecimento foi o estabelecimento da phantasîa kataleptikê [impressão compreensiva] como critério. [p. 24]


A tese de que o conteúdo de sentenças ou predicações teria valor incorporal não está presente nas passagens recolhidas de Zenão e Cleanthes, a não ser por uma menção em Stobeos [I. 12. 3], de que as noções seriam “quase-coisas” (cf. nota [10]). Pearson indica que “nós aprendemos que [Cleanthes] introduziu o termo lektôn no sentido de kategôrema” [atributo, predicado, propriedade]. No comentário do frag. 07, devido a Cleanthes em sua coleção, Pearson afirma que os lektá seriam

abstrações contidas nos pensamentos, enquanto expressos no discurso, em oposição aos pensamentos de um lado, e às coisas pensadas por outro... Sendo incorpóreos não podem [os lektá] ter existência real, e no entanto os Estóicos parecem ter hesitado em negar sua existência de todo... na terminologia usual da escola kategôrema é uma sub-divisão de lektôn... nós podemos inferir que Cleanthes foi o primeiro a definir kategôrema em seu sentido mais restrito com a introdução do novo termo [mais abrangente] lektôn. [10]

Nesse caso podemos compreender os lektá como predicações significativas que se enquadram em conteúdos abstratos prévios... Pode-se supor que “incorpóreo” tenha surgido como sinônimo para “abstrato”, mas é difícil entender como a partir daí surge a definição das outras predicações que seriam “corpóreas”.

 

No comentário do frag. Z. 24 devido a Zenão

Zenão afirma que uma causa é ‘aquilo porque’, enquanto que aquilo de que ela é uma causa é um [sumbebekôs]; e que a causa é um corpo, enquanto aquilo de que ela é uma causa é um predicado. Ele diz que é impossível que a causa esteja presente, e que assim, aquilo de que ela é causa, não seja decorrente. Esta tese tem a seguinte força. Uma causa é aquilo porque algo ocorre, como, por exemplo, é por causa da prudência que ser prudente ocorre, por causa da alma que ser vivo ocorre, por causa da sensatez que ser sensato ocorre. Pois é impossível, ao se ter sensatez, não ser sensato, ou, ao se ter alma, não ser vivo, ao se ter prudência, não ser prudente. [Stobeos, I. 13. 1] [Arnim, I. 89] [L&S 55. A] [11]

Pearson, comentando o termo kategôrema, conclui que aquilo que surge (enquanto predicado) devido à causa:

seria por tanto incorpóreo, e Crísipos e Possidônios concomitantemente falam dele como não-existente. Provavelmente esta inferência não se apresentou à mente de Zenão, uma vez que a questão da [realidade] dos lektá somente surgiu posteriormente. [pag. 77]

 

Notas

[7] O tradutor brasileiro entende que Crísipos teria se tornado “discípulo” dos Ceticistas no [184], certamente por influência do [179], mas os outros tradutores entendem que ele “fez estudos filosóficos” com aqueles.

Hicks traduz o [184]: “At last, however... he joined Arcesilaus and Lacydes and studied philosophy under them in the Academy. And this explains his arguing at one time against, and at another in support of, ordinary experience, and his use of the method of the Academy when treating of magnitudes and numbers.”

E Yonge [London, 1853] traduz: “But at last, when Arcesilaus and Lacydes... came to the Academy, he joined them in the study of philosophy”.

Plutarco menciona no início de seu Concepções Comuns contra os Estóicos que Crísipos escrevera “contra Arcesilaos”. [cf. D.L., VII. 198]

[8] Os vários intérpretes desde o séc. XIX admitem 336, 335, 334 e 332 para o ano de nascimento de Zenão. Arcesilaos, nascido próximo a 318, era ainda um rapaz quando a Stoa foi fundada. Ao se tornar escolarca, adota o pirronismo na ética, e o ceticismo na lógica (epistemologia), mudando a face da academia platônica e dirigindo sua crítica às teses de Zenão. Nesse período, as novas gerações de filósofos traziam biografias extravagantes, luxuosas, ou demasiado ascéticas... Ariston de Quíos acusava a Arcesilaos de “devasso e corruptor da juventude”. O pirrônico Tímon se dedica a gracejos e anedotas a respeito de seus rivais filosóficos, que são minuciosamente recolhidos e displicentemente espalhados, em meio às sentenças de utilidade filosófica, em Diogenes Laércios.

O jovem fenício Zenão deve ter se instalado em Atenas próximo a 315, com cerca de 20 anos. Sendo filho de um mercador próspero, se torna estudante de filosofia por dez ou doze anos. Segundo a lenda, um naufrágio com seu carregamento de púrpura em frente ao Pireu, teria apressado sua vocação filosófica. De início, acompanha o cínico Crates. Antisthenes, um cidadão ateniense bastante culto e educado, nascido em 446, autor de muitas obras, discípulo de Sócrates, havia fundado a tradição dos “cínicos” ou “caninos”. O termo tinha a dupla significação de a escola ter sido fundada num promontório com nome de cão, e de alusão à doutrina de obstinação moral e severidade de Antisthenes. O termo cínico indicava a atitude ascética, inflexível, tal como o termo estóico veio a indicar depois. Antisthenes era também iniciado nos Mistérios Órficos.

De Xenocrates, Zenão deve ter ouvido muito pouco, se é que foi seu discípulo. Xenocrates teria nascido em 396, se tornando escolarca da academia em 339, e falecendo em 314, com 82 anos [Kury, nota 306]. Polêmon, nascido próximo a 345, terceiro escolarca na sucessão da Academia, deve ter sido seu mestre por mais tempo. (E só muito depois, de Arcesilaos). Zenão segue depois a lições do megárico Stílpon. Suas próprias lições na Stoa devem ter-se iniciado um pouco antes do ano 300 (Um pouco após, segundo Pearson).

[9] Cleanthes teria vivido 99 anos, de 331 a 232. Arcesilaos foi escolarca de 273 até falecer em 242, quando Lacides assume o posto. É provável que, havendo Cleanthes se tornado ancião, Crísipos tenha reunido um grupo de alunos em torno de si, diferentes daqueles que teriam continuado com o soturno mestre do logos divino... Ao se tornar escolarca, Crísipos estaria refundando a Stoa.

Isto é sugerido ainda por Diog. Laércios em [VII. 34]:

[Isidoros de Pêrgamon] afima que as passagens contrárias à doutrina estóica foram expurgadas das obras [de Crísipos] por iniciativa do estóico Atenôdoros, na época em que lhe foi confiada a biblioteca de Pêrgamon, mas foram reinseridas posteriormente, quando se descobriu o procedimento de Atenôdoros, contra quem foi instaurado um processo. É isso que se sabe a respeito das passagens de seus escritos consideradas espúrias. [Kury, VII. 34]

Ou seja, duas correntes persistiram na Stoa, uma de seguidores de Crísipos, e outra de seguidores dos fundadores.

Dois autores gregos do período romano com extensa obra preservada, Plutarco ao final do primeiro século, Galenos ao final do segundo, foram críticos sistemáticos de Crísipos. Galenos escreveu um livro Sobre as Qualidades Incorporais (preservado).

No pref. e introd. de seu ensaio de 1910 (356 pags.), Bréhier subscreve a imagem de Crísipos como “segundo fundador do Estoicismo... ao defendê-lo contra dissidentes como Ariston, e contra os adversários”: Portanto, não como dissidente, ele mesmo, e após contemplar as críticas dos adversários.

Para Chrysippe et le Ancien Stoïcisme:
archive.org/stream/chrysipp00br#page/n7/mode/2up

[10] Pearson, pags. 40, 241 (citando como ref. Stein, Erkenntnistheorie der Stoa). Cleanthes escreveu um livro com o título Peri Kategoremâton [D.L. VII. 175].

Long&Sedley [55. C] traduzem Pearson [C. 07]:

for Cleanthes and Archedemus call predicates “sayables”
[Clement, Miscellanies, VIII. 9. 26] [Arnim, I. 488]

A tradução “sayable” para lektôn não parece adequada uma vez que é a expressividade ou significatividade das sentenças que deve estar sendo realçada, não sua discursividade. Sendo portanto preferível “exprimível”, seguindo as traduções francesas.

Em Adversus Mathematicos VIII. 80, p. ex., o texto de Sextos não é consistente: Bett igualmente utiliza a tradução “sayable”

every sayable has to be said (this is how it came by its name)

Porém numa frase a seguir já deveria estar claro:

For saying is, as the stoics themselves claim, bringing forth the utterance that is capable of signifying the conceived object... [Bett, II. 80] [Arnim, II. 167]

[11] Nossa tradução para [L&S 55. A]. Na pag. 76 Pearson justifica a interpretação de sumbebekôs para ”resultado” ou “consequência inseparável”, modificando o sentido aceito a partir de Aristóteles como “acidente”, “peculiaridade”. A intenção de Zenão era de substituir os quatro tipos de causas aristotélicas por uma única “eficiente”: ou seja, material ou somática. Assim, a predicação sobre “o que resulta da causa” é acerca de uma consequência necessária, e material: - contradizendo a possibilidade “incorporal”.

Long&Sedley traduzem sumbebekôs por attribute.

Stobeos [I. 12. 3] faz menção a que

de acordo com a doutrina de Zenão, as noções [ennoêmatâ]... são imagens da psiquê, as quais são quasi-coisas e quasi-qualificadas. [cf. D.L. VII. 61, adiante]

Essa distinção surge em função da crítica ao estatuto das idéias platônicas. Ainda na mesma passagem de Stobeos

Os filósosfos estóicos dizem que não existem as Idéias, e que as noções [ennoêmatâ] são aquilo de que participamos, e que aquilo de que somos portadores são os casos [gramaticais] que eles chamam de apelativos. [Pearson, Z. 23] [Arnim, I. 65] [L&S 30. A]

Nossa tradução adaptada para [L&S 30. A]: cf. adiante, L&S traduzem ennôema por “conceito”.

Esta citação direta de Zenão seria uma rara instância que pode indicar como se originou a série das predicações abstratas, quasi-substanciais, quasi-existentes, subsistentes, incorporais, etc. O macedônico Stobeos escreve como antologista, 750 anos depois de Zenão. Com mais de 50 fragmentos estóicos na coletânea de Long&Sedley, tem um texto mais claro e conciso que Sextos Emp. e D. Laércios.

 

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