A tese do Deus Artífice pode ser expressa sob vários aspectos cosmológicos simultâneos:
1) Enquanto Deus produtor da física, como substância ígnea, de modo que o trabalho da força ativa é o trabalho entre corpos e causas eficientes. O pneuma, o aéter e o ígneo são variações do corpo do Theôs: as substâncias físicas vão sendo criadas pela força ativa, que é Zeus. Ele faz o nascimento das sementes no úmido e no quente.
2) Como pneuma pervasivo, que exerce o tônos.
3) Enquanto sustentador do Cosmos, como Tônos, força de coesão, tensão orgânica - que contém toda a Phýsis; ou como Hêxis, que contêm cada reino da natureza.
4) Como Hegemonikôn, orgão diretor universal. A inteligência humana é consequência dela reproduzir localmente o formato universal. O hegemonikôn é a parte mais excelente da Psiquê [Psikhê].
5) Enquanto lei e lógica universal final e inexorável, conforme sugerido por Herâcleitos em suas sentenças sobre o Logos. Mesmo a desmesura, o crime e o sofrimento cabem num logos final universal de reparos e medidas.
6) Enquanto Logos, como Justiça e Providência; isto é, uma administração geral do universo. Veja-se que, como Justiça, o Logos tem uma efetuação laboriosa, no tempo, do Deus e seus auxiliares. O Deus (enquanto Zeus, ou Brahmá) não seria agora um vivente fora do espaço e do tempo (enquanto o Theôs está fora do espaço e tempo, assim como o Brahman); não como um poder ab-soluto, ao contrário; como um poder que se dissolve (no espaço, na matéria, no tempo).
7) Enquanto Orthôs Lôgos: sendo dado como conceito da Lógica, mas com a consequência ética de pensamento correto, no sentido de se encontrar uma lógica já definida de modo objetivo e singular na natureza do vivente humano, em seu conjunto mundano, em seus deuses protetores. O humano observa, procura, reconhece, reafirma... Por diferença a uma lógica do sujeito transcendental, onde o humano é o sujeito da história e do conhecimento por excelência. [7]
8) Como Heimarmêne, Encadeamento do Destino, em que a ação divina inicial dá lugar a uma série de ações por parte de deuses e humanos. Estas ações novamente são recobertas, revisadas, pela ação dos deuses sobre os humanos; e pela ação do divino sobre os deuses – num regime incessante.
O que é próprio dos Estóicos, como doutrina ou dogma, é que a complexidade é sempre primeira no Cosmos (e assim de modo inteiramente oposto ao materialismo do séc. XIX ocidental). A inteligência, a sensibilidade, a organização, as potências, estão sempre, desde todas as origens, com as entidades ou viventes.
O termo demiourgós originalmente significa artesão, aquele que trabalha as matérias primas. É no Timeu platônico que assume o significado de criador que concede-a-Forma; de um Deus que atualiza formas abstratas, incorpóreas. E é com esse sentido que é adotado posteriormente para o Deus da Bíblia cristã. Porém, é exatamente este sentido platônico que Zenão está fazendo reverter para aquele da oficina “materialista” do Deus Artifex. [8]
Um Deus não apenas com muito mais atividades universais que o Deus agostiniano ou tomista, mas ainda, notavelmente bem mais complexo que o Deus do panteísmo spinozista. Enquanto o Zeus heraclítico-zenoniano, como porção do Theôs (o deus Pan) tem diversas funções e trabalhos em diversos setores, expressando seu logos, eventualmente sua vontade, em diversos lugares, o Deus spinozista é manifestado segundo os dois atributos conhecidos: do pensamento e da corporalidade. O pensamento é dado, cartesianamente, como substância, não como produto da ação imaginosa. A corporalidade, todavia, é destituída de sua substanciosa forma, se tornando a propriedade da extensão, tornada essência. [9]
O monismo segundo o qual os Estóicos são muitas vezes exemplificados é assim consequência desta tese teológica inicial, que se desdobra em vários aspectos e modalidades. Desde o início, a tese de uma divindade panteísta produtiva, eficiente, praticante. Se dissolve pelo universo; se ocupa, resolve conflitos; não uma filosofia do Ser divino, mas uma filosofia da Práxis universal. Nesta práxis, as ações humanas, e dos deuses, fazem parte de um Encadeamento: não há que se deter na questão grandiloquente do “livre arbítrio”, mas na consideração de um âmbito de possibilidades, em que os humanos e deuses têm uma série de opções em fazer ou não fazer, dentro de um quadro de disponibilidades iniciais. Sobre as ações de todos os viventes, o Artífice Universal refaz as suas opções, suas apostas. [10] Assim que a Heimarmêne, que é o Destino, é igualmente um desencadeamento: do Logos, de uma disposição inicial... à qual, em um Tempo, todos retornam...
É inútil dizer que Zenão repete, ou que desautoriza, Platão e Aristóteles. Ele, que recebia quando jovem de seu pai os livros atenienses, é um típico estudante de Filosofia, e como tal um analista histórico e sintetizador teórico. [11]
Em Academica I, na versão construída por Cicero, o grande autor romano Varro está fazendo a descrição da fundação filosófica de Zenão:
[35] Já Polêmon havia tido alunos diligentes em Zenão e Arcesilaos; porém Zenão, que precedia a Arcesilaos em idade, sendo um dialético bem mais sutil e um pensador refinado, instituiu uma reforma no sistema daquela escola.
Zeno and Arcesilas had been diligent attenders on Polemo; but Zeno, who preceded Arcesilas in point of time, and argued with more subtilty, and was a man of the greatest acuteness, attempted to correct the system of that school.
Iam Polemonem audiverant assidue Zeno et Arcesilas; sed Zeno, cum Arcesilam anteiret aetate valdeque subtiliter dissereret et peracute moveretur, corrigere conatus est disciplinam.
Zenão teria instituído uma reforma no sistema filosófico da academia platônica, conforme o que ele herdara de Polêmon. Esta seria a recordação de Cicero, para o que teriam sido os ensinamentos de Antiochus aos jovens romanos Varro, Cicero, etc, quando estudantes de filosofia grega.
Sextos Empiricos sugere que a caracterização da primeira academia (no período que se segue a partir de Platão) feita por Antiochos, seria uma versão estóica da herança platônica, não simplesmente um “retorno” de Antiochos à dogmata da primeira academia, depois de sua polêmica célebre com Philo de Larissa. Philo havia se convertido à versão socrática e ceticista da segunda academia, adotada por Arcesilaos quando se tornara Escolarca. [12]
A Filosofia Estóica é fundada pelo Zenão de Citium (cidade grego-fenícia na atual Chipre) próximo a 302 ou 301 a.C., em Atenas [13], com esta revisão da tradição jônica, platônica, aristotélica, na forma de um constructo unificado, atraente para os alunos. Para a pedagogia da nova Escola, as partes solidárias são desmontadas como séries analíticas separadas. A divisão tríplice em Lógica, Física, Ética, presente em Xenocrates, é admitida, mas ela supõe agora um poliedro, o qual, sendo observado por vários ângulos, permite ver um mesmo núcleo, aceso, irradiante, ao centro...
A Filosofia é composta por proposições iniciais, apresentadas de modo esquemático: O sentido de uma escola de Filosofia é a demonstração dessas proposições ao longo do tempo. Este sentido é estranho ao Socrático: não se trata de (se) apresentar proposições que possam ser de imediato comprovadas, nos termos “dialéticos”; ou de se duvidar de imediato das proposições empíricas que se apresentam, no modo cético. A justificativa inicial para as proposições resulta de uma síntese:
1) análises dos materiais históricos, empíricos, de um povo;
2) um sentido intuitivo;
3) e um processo sintético, por direito de inferências.
E o que será a disciplina da Filosofia senão este processo, como uma pauta em três latitudes simultâneas?
Notas
[7] [cf. Acad. I, x:] Zenão herdou esta noção unitária da virtude, tón kalôn, da escola de Sócrates, através de Antístenes.
[128] ... Cleanthes e seus adeptos afirmam que temos de fazer uso constante da excelência [aretê], pois não se pode perdê-la, e o homem excelente não renuncia em caso algum a servir-se dela, que é perfeita. A justiça existe por natureza, e não por convenção, da mesma forma que a lei e a reta razão [orthôs lôgos], como diz Crísipos em sua obra Do Belo.
[88] Por isso o fim supremo pode ser definido como viver segundo a natureza, ou, em outras palavras, de acordo com nossa própria natureza e com a natureza do universo, uma vida em que nos abstemos de todas as ações proibidas pela lei comum a todos, idêntica à reta razão difundida por todo o universo e idêntica ao próprio Zeus, guia e comandante de tudo que existe. [Kury, VII]
Desse modo é dado o sentido de “seguir as ordens da Natureza”, conforme em Academica I, v:
And for the first of these sections, the one dealing with the right conduct of life, they went for a starting-point to nature, and declared that her orders must be followed...
Qualities conducive to the comprehension of virtue; these they divided into gifts of nature and features of the moral character ...
To the moral character they deemed to belong the interests or habit which they moulded partly by diligent practice and partly by reason... [Rackham]
Nietzsche zombava da pretensão estóica em “ser conforme”, e “obedecer”, à Natureza. Para os pensadores decididamente ateus do séc. XIX, o natural seria sinônimo de “selvagem”: seguir os instintos, pulsões ou trieben; aceitar o inconsciente libidinal. Sendo leitor de Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres em seus mínimos detalhes filológicos, o filósofo da Will zur Macht parece não dar importância aos parágrafos VII. 88, 128 da obra de Laércios, que é fonte de referência frequente em seus primeiros semestres de aulas sobre os pré-platônicos: The Pre-Platonic Philosophers, F. N., Translated from the German by Greg Whitlock, Univ. Illinois Press, 2001.
[8] Em algumas passagens do Timeu em que Platão admite metáforas de oficina-de-artesão, como em [33.b], na qual o demiúrgo usa “um torno” para arredondar o conjunto do ser-vivo, seu material de trabalho é ainda de puras abstrações, as quais são paradeigmas [28.a]: o Número, o Mesmo, o Ser, o Outro, o Semelhante.
[41.d] Assim falou, e, voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura, deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira; porém, comparativamente à primeira mistura, esta não ficou com o mesmo teor de pureza, mas sim com um segundo ou terceiro grau. [Timeu-Crítias, Coimbra, 2011; trad., apres., e notas Rodolfo Lopes]
Depois de criar os deuses, que são imortais enquanto “ele quiser”, e de semear as almas nos astros, o demiúrgo encarrega aos deuses [42.d] a criação das três espécies corporais mortais, as aladas, as que nadam, e as que andam sobre a Terra [40.a]. Após isso, ele se mantêm exterior ao mundo criado, em seu estado de perfeição ontológica.
Os mortais, que obtém graus de imortalidade--mortalidade, na medida em que são racionais ou irracionais; na medida em que habitam o Ser-uno, ou experimentam o Devir com seus corpos... retornam a vidas mais perfeitas em seus “astros de origem” [42.b]; ou, como “negligentes, imperfeitos e dementes”, retornam ao Hades [44.b], a repetir seus hábitos.
O texto platônico da criação universal nestas passagens faz supor uma repetida mescla de temas órficos, pitagóricos, iniciáticos, os quais não seriam estranhos a seus equivalentes teosóficos orientais. No Timeu os temas teosóficos reaparecem misturados com termos do racionalismo eleático. De acordo com McEvilley:
Orphism is the great mystery of Greek Philosophy. “Without Orphism”, a modern scholar claims, “we cannot explain Pythagoras, nor Heraclitus, nor Empedocles, and naturally not Plato and whatever was derived from him.” [Citando Giovanni Reale, A History of Ancient Philosophy, 1987]
“Whatever was derived from him” is a vast category indeed if one thinks of the famous observation that all western philosophy was a series of footnotes to Plato. The claim seems overstated, though, in that Plato’s Orphism does not seem to have much to do with, say, his analytical approach... Plato’s Orphic side coexisted with his logical and analytical side, though they do not seem ideally compatible. [Cap. 7]
Em [32.b] o demiúrgo tem seu raro exemplo de trabalho com a física das substâncias: do fogo, da água, do ar, e da terra, misturando-as segundo a proporção numérica ideal, obtendo uma solidariedade amistosa [philia], para dar nascimento ao “corpo do mundo”, e a um “céu visível e tangível”.
[9] Na ética medieval católica, a plena adesão pela fé recobre o modelo teológico insípido, de um Deus sempre transcendental e absoluto. No spinozismo, a pura liberdade de ser consagra toda a ausência de finalismo e encadeamento. A noção de liberdade é elevada à categoria de um idealismo perfeito.
O Deus Pan de Spinoza, visto como notável originalidade para sua época, nem grego, nem hebreu, nem cristão, tem sua energéia ou manifestação apenas segundo o exercício de dois (ou mais) atributos co-extensivos: a extensão e o pensamento; e segundo um poder sempre “infinito”, indefinido, de liberdades nos modos ou afetações recíprocas entre seres, corporificados e dotados de “razão”, portanto de escolha, etc... Uma Divindade que se quer geométrica, dinamizada, deslizante... que entende a expressividade como puro movimento; suas inflexões, limites.
[10] O fragmento de Heracleitos [D.K. 94] “Hélios não ultrapassará seus limites; do contrário as Erinýas, auxiliares de Dikê, saberão encontrá-lo” [O Logos Heraclítico, Damião Berge, I.N.L., RJ, 1969], dá idéia de uma sucessão contínua de atos de revisão, ou sucessão jurídico-administrativa do Universo: mesmo o Sol poderia pretender extrapolar seus poderes; logo as Erinýas apareceriam para verificar o que está acontecendo; as Erinýas são auxiliares de Dikê, a Justiça, e Dikê é auxiliar de Zeus.
[11] Em Diog. Laércios:
[31] ... Em sua obra Homônimos, Demétrios de Magnesia relata que Mnaseas, o pai de Zênon, sendo um mercador, vinha frequentemente a Atenas, e de lá levava muitos livros socráticos para seu filho ainda menino. Por isso, antes mesmo de deixar sua pátria, já tinha uma formação filosófica.
[32] Sendo assim, chegando a Atenas, encontrou-se com Crates. Parece ainda, segundo Demétrios, que ele já havia definido o fim supremo, enquanto os outros filósofos divergiam em suas opiniões. [Kury, VII]
[12] Em Academica I, a versão de Antiochos sobre a primeira academia está na numeração de origem [15-32], sobre o Liceu em [33-35], sendo a doutrina de Zenão apresentada em [35-42], caps. X e XI. Rackham esclarece que Cicero está escrevendo com os textos de Antiochus à sua frente. Para efeito dramático ele apresenta seus discursos, de Varro, de Lucullus, como se fossem memórias de diálogos com o mestre estóico-platônico Antiochus de Ascalon. Antiochus havia escrito o Sosus, em Alexandria, para contestar seu ex-professor Philo de Larissa. Na versão ceticista Platão, Aristóteles, Estóicos e Epicuristas eram considerados "dogmáticos"... Cicero era seguidor dos Céticos-Socráticos: Arcesilaos, Larissa, Carneádes, Clitomachus.
Em seu Esboços Pirronianos [Outlines of Scepticism, Annas& Barney, Cambridge, 2000, Book I], Sextos Empíricos registra:
[235] ... Antiochus brought the Stoa into the Academy; for he tried to show that stoic beliefs are present in Plato.
[13] Conforme Hicks, a descrição da Galeria Pisianax ou Galeria das Pinturas (Stoâ Poikîle), na praça central de Atenas, corresponde a uma colunata [colonnade], tendo uma parede de fundo com as pinturas de Polygnotos. Era local solene, de valor artístico e histórico. (Os Trinta Tiranos teriam se reunido na Stoa para comandar a execução dos derrotados no conflito com Esparta, e não a execução teria ocorrido ali.) A tradução do termo stoa para porticus no latim, deu origem à tradução “porch” no inglês, e ao uso de “pórtico”, no português e no espanhol.
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